Introdução
As Áreas Protegidas (APs)(1) têm se mostrado eficazes contra o avanço do desmatamento na Amazônia brasileira (Arima et al. 2007; Soares-Filho, et al., 2010). Entre 2004 e 2006, por exemplo, o desmatamento na região reduziu em 37% como consequência da criação, entre 2003 e 2006, de aproximadamente 485 mil quilômetros quadrados em Unidades de Conservação (UC) (Soares-Filho, et al., 2010). Este valor representa 40% das UCs existentes na Amazônia Legal em 2010 (Imazon & ISA, 2011).
Porém, o desmatamento e a degradação florestal têm ameaçado a integridade de algumas dessas áreas. Até julho de 2011, o desmatamento em APs já correspondia a 7% do desmatamento total ocorrido na Amazônia Legal. Ademais, tem aumentado a pressão pela desconstituição, redução de área ou mudança de status de proteção de APs tanto por segmentos do agronegócio e moradores locais como pelo próprio governo. Por exemplo, Araújo e Barreto (2010) identificaram 48 APs sob ameaça de desconstituição, redução de área ou mudança de status de proteção legal. Até julho de 2010, 29 dessas áreas haviam perdido 49 mil quilômetros quadrados e outras 18 ainda estavam sob o risco de perder 86 mil quilômetros quadrados.
Além disso, em junho de 2012, o Congresso Nacional aprovou a Lei Federal nº 12.678 que, apesar de ampliar os limites do Parque Nacional (Parna) dos Campos Amazônicos, excluiu áreas do Parna e reduziu outras sete UCs em um total de 1.644,8 quilômetros quadrados sem qualquer consulta pública e estudos de impacto socioambiental (Piovesan & Siqueira, 2012). O objetivo das alterações foi regularizar áreas ocupadas e permitir a implantação das hidrelétricas Jirau, Santo Antônio e Tabajara, em Rondônia, e o complexo hidrelétrico do Tapajós, no Pará. Iniciativas como estas abrem precedente e criam expectativa para que outras UCs possam também ser reduzidas da mesma maneira (Araújo, et al., 2012). A situação pode se agravar considerando que o governo planeja investir R$ 96 bilhões para gerar 42.000 MW de hidroeletricidade até 2020 na Amazônia, como indica o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) (MME, 2011).
Neste relatório apresentamos as APs da Amazônia Legal com situação mais crítica no que se refere ao desmatamento e à ameaça de desafetação. Para o desmatamento analisamos: a perda absoluta de floresta original entre 2009 a 2011; a perda percentual de floresta original entre 2009 a 2011; e o percentual de floresta remanescente em 2011. Com relação à desafetação, analisamos as APs sob ameaça por projetos de lei, decreto legislativo, ações judiciais ou projetos hidrelétricos planejados. O objetivo deste relatório é revelar as áreas prioritárias para intervenções que garantam os objetivos de conservação e proteção de direitos das populações indígenas e tradicionais.
(1) O conceito de Áreas Protegidas inclui as Unidades de Conservação (UC) e os Territórios de Ocupação Tradicional: as Terras Indígenas (TI) e os Territórios Remanescentes de Quilombo. Esses são os dois principais grupos de APs incluídos no Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP). Neste boletim consideramos apenas as UCs e as TIs.
Áreas Protegidas Críticas
A Figura 1 apresenta as dez APs mais críticas para cada uma das três análises de desmatamento e uma lista de todas as APs ameaçadas de desafetação por projetos de lei, decretos legislativos, ações judiciais ou projetos hidrelétricos. As APs críticas estão principalmente concentradas em três regiões: centro-oeste do Pará, sudeste do Amazonas e norte de Rondônia. Outras áreas estão distribuídas no restante dos estados da Amazônia Legal. Nas subseções a seguir apresentamos os detalhes de cada ranking.
Figura 1. Áreas Protegidas críticas da Amazônia Legal.
DESMATAMENTO
Maior média de perda de floresta original entre 2009 e 2011
DESMATAMENTO MÉDIO (KM2/ANO)
Maior média de perda de floresta original entre 2009 e 2011
Maior média de perda percentual de floresta original entre 2009 e 2011
DESMATAMENTO MÉDIO (%)
Maior média de perda percentual de floresta original entre 2009 e 2011
Menor percentual de floresta remanescente em 2011
EM % DE FLORESTA REMANESCENTE
Menor percentual de floresta remanescente em 2011
AMEAÇA DE DESAFETAÇÃO
Áreas Protegidas Críticas pelo desmatamento
Perda absoluta de floresta original entre 2009 e 2011
As dez APs com maior média da perda absoluta de floresta original entre 2009 e 2011 incluem cinco UCs e cinco Terras Indígenas (TIs). Apenas uma das UCs, a Reserva Biológica (Rebio) do Gurupi, no Estado do Maranhão, pertence à categoria de Proteção Integral. Entre os estados da Amazônia, o Pará apresenta o maior número de casos: 5 (Tabela 1).
Tabela 1. Ranking das dez APs com maior média de perda absoluta de floresta original entre 2009 e 2011.
A Flona do Jamanxim, no sul do Pará, próxima à BR-163, lidera o ranking com perda absoluta de 43 quilômetros quadrados ao ano para o período estudado. O governo federal tem sinalizado que reduzirá esta UC para legalizar ocupações, o que incentiva mais desmatamentos. Na segunda posição está a Floresta Extrativista (Florex) Rio Preto-Jacundá, em Rondônia. A partir de 2000 o desmatamento nesta UC começou a aumentar, com destacada alta em 2004 e 2005. A Florex Rio Preto-Jacundá foi criada pelo Decreto nº 4.245/1989 com 10.550 quilômetros quadrados, mas não foi demarcada. Um representante da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental de Rondônia (Sedam/RO) afirma que ela já não existe e que em sua área foram criadas duas novas UCs: a Flona Jacundá, sob jurisdição do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICM-Bio); e a Reserva Extrativista (Resex) de mesmo nome, Rio Preto-Jacundá, gerida pela Sedam. Entretanto, não há decreto de revogação da área da Florex. Assim, descontando as sobreposições, 6.830,5 quilômetros quadrados de APs restam ignorados pela Sedam.
No caso das TIs em situação crítica, a maioria está no Estado do Pará. Entretanto, para os três últimos anos, a TI Awá, localizada no Maranhão, apresenta a maior perda absoluta de floresta. Nesta TI habitam índios isolados cuja sobrevivência está ameaçada pelo desmatamento crescente.
O caso da TI Marãiwatsede em Mato Grosso, oitava posição de perda de floresta, ilustra como a lentidão do poder público leva a perdas ambientais e de direitos dos povos indígenas e a inúmeros conflitos. Em julho de 2012, 24 anos após o Presidente da República ter confirmado o reconhecimento desta TI (Gonçalves, 1999), a justiça federal determinou a retirada da população não indígena da área (Leiva, 2012). Entretanto, até setembro de 2012, o governo federal ainda não havia providenciado a retirada dos ocupantes ilegais (Dióz, 2012).
Método
As dez APs com maior média da perda absoluta de floresta original foram definidas a partir da média da taxa absoluta de desmatamento dos anos 2009, 2010 e 2011.
Perda percentual de floresta original entre 2009 e 2011
O ranking das dez APs com maior média da perda percentual da floresta original nos últimos três anos(2) contém seis UCs e quatro TIs (Tabela 2).
Tabela 2. Ranking das dez APs com maior média da perda percentual da floresta original entre 2009 e 2011.
Cinco das UCs com maior perda percentual estão em Rondônia e pertencem à categoria Floresta Estadual de Rendimento Sustentado (FERS). As FERS foram criadas na segunda metade da década de 1990, porém o governo de Rondônia não definiu claramente as diretrizes de implementação dessas áreas, inclusive as responsabilidades institucionais para sua gestão. Além disso, muitas políticas governamentais desrespeitaram a existência dessas UCs e permitiram a titulação de áreas ocupadas por posseiros e a aprovação de planos de manejo florestal para produção madeireira. Paralelamente, essas UCs ainda apresentam problemas crônicos de gestão relacionados à alocação de recursos humanos e financeiros e infraestrutura física adequada (GTA, 2008). De fato, as FERS são áreas desprovidas de um plano de utilização, o que resulta na perda de sua função.
Entre as TIs, destacamos a Awá, Marãiwatsede e Alto Rio Guamá, porque já apareceram no ranking de maior média de perda absoluta de floresta original e também sofrem grandes perdas percentuais de sua cobertura florestal.
Método
O ranking das dez APs com maior média da perda percentual da floresta original foi definido a partir da média ponderada das proporções de desmatamento de 2009, 2010 e 2011 de cada área com relação ao seu total de floresta.
(2) A perda percentual trata da proporção de floresta desmatada em relação à área total de floresta do ano anterior. A proporção nem sempre representa a maior área absoluta, pois depende da área total original florestada da AP. Apesar de não representar as maiores áreas absolutas, a perda percentual aponta as APs mais comprometidas em termos de área florestada desmatada anualmente.
Percentual de floresta remanescente em 2011
O ranking das dez APs com menor percentual de floresta remanescente em 2011 contém nove TIs e apenas uma UC (Tabela 3), sete das quais estão no Estado do Amazonas. A única UC, a FERS Periquito, está localizada em Rondônia.
Tabela 3. Ranking das dez APs com menor cobertura florestal remanescente em 2011.
As oito primeiras colocadas neste ranking possuem menos da metade da sua cobertura florestal original remanescente, com destaque para as TIs Recreio/São Félix e Tikuna de Santo Antônio. Estas APs estão localizadas no Estado do Amazonas e já perderam mais de 90% de sua cobertura florestal original.
As APs listadas apresentam de 85 a 100% da sua perda florestal concentrada até o ano 2000, exceto a FERS Periquito, que apresenta maiores perdas a partir de 2005. A maior parte (62%) do desmatamento na TI Marãiwatsede também ocorreu antes de 2000, porém há registros significativos de perda florestal nos últimos três anos, como apontam as primeiras análises.
Essas APs, por terem perdido grande parte de sua floresta original, já não cumprem ou cumprem com dificuldade seus objetivos de criação. No caso das TIs e UCs de uso sustentável, o desmatamento compromete o pleno usufruto dos recursos naturais pelos povos indígenas e populações tradicionais já que a perda de floresta impacta diretamente a caça, a pesca e a extração de produtos florestais necessários à sua sobrevivência e bem-estar. Nesses casos, é recomendada a restauração florestal para recompor a vegetação perdida e resgatar o objetivo de existência desses territórios.
No município de Autazes (AM) há um exemplo de restauração da cobertura florestal em TIs. As terras do povo Mura foram desmatadas e ocupadas por não ín-dios em um processo histórico que remete ao século XVIII e que os levou à dispersão. Na segunda metade do século XX, os Mura reivindicaram suas terras e estas foram demarcadas em pequenas áreas de floresta remanescente (ISA, 2011). Contudo, as florestas das TIs sucumbiram às pressões das fazendas de gado do entorno durante o longo período de demarcação. Nesse contexto, os Mura passaram a praticar agricultura de subsistência e a criar pequenos animais. A partir de 2010, alguns produtores indígenas adotaram os Sistemas Agroflorestais (SAFs) para restaurar áreas degradadas e receberam ajuda de órgãos federais, estaduais e municipais(3), assistência técnica da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) e financiamento do Banco da Amazônia. Em 2012, a grande produção de banana despertou o interesse dos produtores indígenas por capacitações em cooperativismo e em técnicas de comercialização(4).
O caso das TIs de Autazes mostra como a restauração florestal por meio de SAFs é uma alternativa à reabilitação de áreas muito desmatadas e dos serviços ambientais necessários à reprodução sociocultural dos indígenas. Além disso, essa iniciativa está em conformidade com a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI(5)), que tem entre seus objetivos: i) identificar as espécies nativas de importância sociocultural em TIs e priorizar seu uso em SAFs e na recuperação de paisagens em áreas degradadas; e ii) promover a recuperação e conservação da agrobiodiversidade e dos demais recursos naturais essenciais à segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas, com vistas a valorizar e resgatar as sementes e cultivos tradicionais de cada povo indígena.
Método
O ranking das dez APs com menor percentual de floresta remanescente foi definido a partir da soma do desmatamento acumulado até 2011 de cada área com relação ao seu total de floresta original.
(3) Fundação Nacional do Índio (Funai), Secretaria de Estado para os Povos Indígenas (SEIND), Secretaria de Estado de Produção Rural (Sepror), Secretaria de Desenvolvimento Sustentável (SDS) e Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Autazes.
(4) Informações obtidas de Edivaldo Oliveira, técnico indígena Munduruku, do Centro Regional da Funai em Manaus, em conversa telefônica com Elis Araújo em 09/08/2012.
(5) Decreto da Presidência da República nº 7.747 de 05 de junho de 2012.
Áreas Protegidas Críticas Segundo as Ameaças de Desafetação
Ameaça de desafetação de Áreas protegidas por iniciativa legal
O aumento da ocupação irregular e da degradação florestal nas APs na Amazônia tem movido iniciativas formais (ações judiciais e projetos no legislativo) para diminuir ou retirar a proteção legal (desafetação) dessas áreas (Araújo & Barreto, 2010). Cerca de 20.600 quilômetros quadrados de APs (n=29) já foram desafetados por lei na Amazônia Legal. A maioria dessas desafetações (83%) ocorreu em anos recentes (2009 a 2012) para regularizar ocupações e permitir a construção de obras de infraestrutura, sobretudo usinas hidrelétricas (UHE).
Até julho de 2012 identificamos dez APs objeto de ações judiciais e/ou projetos no Legislativo (Tabela 4 e Figura 2). As ações judiciais objetivam retirar ocupantes(6) ou invalidar os instrumentos de criação dessas áreas; e os projetos no Legislativo visam desconstituir ou reduzir as APs ou, ainda, permutar(7) áreas. Ao todo, 32.866 quilômetros quadrados correm risco de desafetação.
As desafetações ainda tendem a estimular novas ocupações e maior degradação de APs para forçar desafetações futuras. Um exemplo ocorre no Estado de Rondônia, que tem adotado a desafetação de APs ocupadas como regra, o que se nota tanto pela quantidade de área desafetada (85% do total ou 17.600 quilômetros quadrados) quanto pelo número de APs reduzidas ou desconstituídas (n=21). Mesmo após as desafetações, as APs continuam a sofrer invasão e degradação. A Flona Bom Futuro, por exemplo, foi reduzida em 35% de seu tamanho original em 2010, e ainda assim continua apresentando desmatamento crescente na parte remanescente.
(6) Consideramos a existência de ações judiciais para a retirada de ocupantes de APs como uma ameaça de desafetação porque os ocupantes podem obter decisão favorável a sua permanência na área e também a exclusão de suas propriedades dos limites da AP.
(7) Uma forma de troca de áreas dentro da AP por outras em seu entorno.
Tabela 4. Áreas Protegidas da Amazônia objeto de iniciativa legal para desafetação.
Ameaça de desafetação de Áreas Protegidas para construção de UHE
Identificamos outras 17 APs localizadas na área de influência de projetos hidrelétricos previstos no PAC na Amazônia(8) (Ver Figura 2 e Tabela 5). Tais projetos ainda não iniciaram ou estão em fase inicial do licenciamento ambiental, porém representam risco por causa dos procedimentos que o governo tem utilizado em casos recentes.
Um exemplo dessa ameaça consumada ocorreu em janeiro de 2012, quando o governo federal reduziu UCs nos Estados do Pará e Amazonas através de medida provisória (MP) para permitir a construção de UHEs. Na Bacia do Tapajós foram desafetados 1.050 quilômetros quadrados de cinco UCs para a construção de duas UHEs (Araújo et al., 2012). As desafetações não ocorreram através de lei oriunda do legislativo (apesar deste ter convertido a MP 558 em lei) nem foram baseadas em estudos técnicos conforme determinação legal. Além disso, são questionadas pela Procuradoria Geral da República no Supremo Tribunal Federal (9). Nesse caso, as áreas foram desafetadas antes mesmo do licenciamento ambiental. Por outro lado, a desafetação também pode ocorrer com as obras já em andamento, como no caso do Parna Mapinguari, que perdeu 85 quilômetros quadrados para a formação dos lagos das UHEs Jirau e Santo Antônio.
(8) Usamos a distância de 40 quilômetros estabelecida pela Portaria Interministerial nº 419/2011 para a área de influência direta de aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia Legal. Essa portaria regula a participação dos órgãos e entidades da administração pública federal envolvidos no licenciamento ambiental de que trata o art. 14 da Lei nº 11.516/2007.
(9) Ação Direta de Constitucionalidade nº 4.717.
Tabela 5. Áreas Protegidas na Amazônia potencialmente ameaçadas de desafetação por projetos hidrelétricos.
Figura 2. Áreas Protegidas da Amazônia objeto de iniciativa legal para desafetação e potencialmente ameaçadas por projetos hidrelétricos.
Além das possíveis reduções, as APs próximas às hidrelétricas podem sofrer desmatamentos provocados nas áreas de influência direta e/ou indireta dos empreendimentos. As análises de risco de desmatamento para a área de influência da hidrelétrica de Belo Monte retratam forte ameaça a partir da imigração (Barreto et al., 2011). Apesar de o governo federal prometer usar um novo modelo de construção de hidrelétrica (plataforma) que evitaria imigração, no caso da região do Rio Tapajós o próprio governo estima que os investimentos resultarão na geração de 75 mil empregos(10).
Método
Nesta lista consideramos as APs ameaçadas legalmente por projetos de lei ou de decreto legislativo, ações judiciais e UHEs.
Selecionamos as APs ameaçadas via projeto de lei, decreto legislativo ou ação judicial em tramitação a partir do estudo O fim da floresta? (GTA/RO, 2008), que denuncia a redução e supressão de várias APs no Estado de Rondônia. Também consultamos sites especializados em informações socioambientais na Internet: www.amazonia.org.br, www.ambientebrasil.com.br, www.socioambiental.org.br e www.globoamazonia.com.br; e sites institucionais: www.ibama.gov.br, www.icmbio.gov.br, www.camara.gov.br, www.senado.gov.br, www.presidencia.gov.br, www.ale.ro.gov.br, http://www.al.mt.gov.br, www.trf1.jus.br, www.stj.jus.br e www.stf.jus.br.
Para selecionar as APs ameaçadas por UHEs, consideramos as hidrelétricas planejadas que ainda não tiveram suas obras iniciadas ou estão em fase inicial do processo de licenciamento ambiental. Para essa análise, consultamos o estudo sobre as APs desafetadas na Bacia do Tapajós realizado por Araújo et al. (2012); e o site da Funai: www.funai.gov.br. Identificamos as APs num raio de 40 km da provável localização da UHE planejada, a partir dos dados do site da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica): http://sigel.aneel.gov.br/.
Vulnerabilidades Sistêmicas
Nossa análise revela que as APs críticas têm sucumbido às ameaças decorrentes do agronegócio e de projetos de infraestrutura, especialmente hidrelétricas. Estas áreas são vulneráveis por causa de falhas sistêmicas do poder público, que tem o dever de protegê-las. Nesta seção resumimos estas falhas para ajudar no desenho de soluções.
O governo tem aumentado a fiscalização ambiental em algumas regiões por meio de operações de campo que resultam em multas, confisco de bens (inclusive gado) e embargo econômico. Porém, estas ações são insuficientes, pois são iniciadas após o dano ter ocorrido e a aplicação final das penas é baixa. Por exemplo, menos de 0,5% do valor das multas tem sido arrecadado e muitos infratores continuam usando as áreas embargadas.
Faltam estruturas básicas de governança para prevenir os danos e promover o uso sustentável das UCs. Por exemplo, das 11 UCs listadas nos rankings, oito não possuem plano de manejo, nove não possuem conselhos gestores formados e oito não têm funcionários dedicados a sua gestão, sem contabilizar aquelas que não disponibilizaram esses dados.
A vulnerabilidade decorre também da escassez de recursos e da incapacidade governamental de executar o orçamento disponível. Em um relatório publicado em 2008, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) afirma que apenas R$ 312 milhões do orçamento federal foram repassados às UCs, enquanto os custos recorrentes anuais para as UCs federais deveriam somar aproximadamente R$ 543 milhões. Segundo o MMA, para a estruturação mínima do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc) seriam necessários R$ 611 milhões em investimentos no sistema federal e cerca de R$ 1,18 bilhão nos sistemas estaduais. Contudo, os valores disponíveis nos orçamentos da União e dos estados têm sido muito aquém do necessário (Inesc, 2011). Além disso, os esforços têm sido insuficientes para a arrecadação de receita via instrumentos alternativos como visitação, ICMS Ecológico, entre outros (Muanis et al., 2009).
É ainda mais preocupante o fato de que o governo federal tem sido incapaz de executar o orçamento das APs. Em 2008, apenas R$ 49,5 milhões dos R$ 500 milhões arrecadados da compensação ambiental federal foram investidos. Estes valores são arrecadados de empresas para compensar os danos decorrentes de grandes projetos que recebem a licença ambiental. A baixa aplicação desse recurso se deve: i) à falta de prioridade política para regulamentar os processos técnicos, administrativos e operacionais para destinação do recurso; ii) à capacitação insuficiente dos recursos humanos; e iii) ao ambiente de incerteza jurídica criada pela Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 3.378/2008(11), movida pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) (Muanis et al., 2009).
Além disso, o ICMBio(12) gastou apenas 50% do orçamento até 15 de outubro de 2011, quando 80% do ano já havia decorrido (executado R$ 290 milhões de R$ 567 milhões). Nesse mesmo período, o ICMBio executou apenas 13,36% do orçamento do Programa Conservação e Recuperação dos Biomas Brasileiros (R$ 24 milhões de R$ 184 milhões (Inesc, 2011).
No caso das TIs, o Ministério da Saúde e o Ministério da Justiça gastaram, de 2006 a 2010, cerca de R$ 2,84 bilhões em ações finalísticas aos indígenas. Esse valor equivale a aproximadamente 92,37% do que foi autorizado pelo Congresso Nacional, de modo que R$ 234,8 milhões retornaram ao Tesouro Nacional (Inesc, 2011).
Ao mesmo tempo em que os recursos são devolvidos, ainda falta lidar com os ocupantes, seja para removê-los ou indenizá-los quando for o caso. Como as regras sobre posses de terras públicas no Brasil são confusas e o judiciário é lento, os ocupantes permanecem nas áreas por muitos anos e continuam degradando e usufruindo do patrimônio público ou de populações indígenas e tradicionais (Barreto et al., 2008). Com o passar do tempo, os ocupantes ganham poder econômico e político para pressionar pela extinção ou enfraquecimento da proteção legal. Governantes acuados ou coniventes têm reduzido a proteção legal de várias áreas (Araújo & Barreto, 2010). Em alguns casos os governos têm demorado a aplicar decisões judiciais para a remoção de invasores, o que reforça as pressões como nos casos das TIs Marãiwatsede e Alto Rio Guamá.
A vulnerabilidade das áreas se agrava à medida que o próprio governo usa meios legalmente questionáveis para reduzir APs e, com isso, acelerar seus projetos de infraestrutura, como medidas provisórias sem consultas públicas. Este tipo de medida reforça a pressão de ocupantes ilegais para desafetar outras áreas.
(11) Em abril de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) julgou o mérito da Adin nº 3.378 movida pela CNI, afirmando que a cobrança da compensação ambiental era constitucional e deveria ser proporcional ao dano causado pela obra, e derrubou o valor mínimo de 0,5%. Em maio de 2009, o Decreto Federal nº 6.848 estabelece uma nova metodologia de cálculo da compensação, na qual foi fixado um valor máximo de cobrança em 0,5% do custo do empreendimento. Ou seja, o que antes era o patamar mínimo tornou-se o máximo. No mês seguinte, o Instituto Socioambiental (ISA) e a ONG Amigos da Terra-Amazônia Brasileira entraram com uma nova ação no STJ (Reclamação nº 8.465) alegando inconstitucionalidade da decisão por razão homóloga à que levou o STF a julgar a Adin nº 3.378. Ainda não houve pronunciamento sobre a Reclamação.
(12) Criado pela Lei 11.516/2007, o ICMBio é uma autarquia integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), vinculada ao MMA. Entre suas atribuições está a criação, implementação e gestão das UCs federais.
Recomendações
Para assegurar a integridade das APs será necessário tomar medidas prioritárias pontuais para lidar com as áreas críticas identificadas neste trabalho, ao mesmo tempo em que se avança em medidas para sanar as vulnerabilidades sistêmicas.
Para as áreas com pequenos remanescentes florestais, sem pressão adicional de desmatamento, será necessário investir na restauração para que elas cumpram seu objetivos. Em algumas TIs do Amazonas, áreas desmatadas têm sido restauradas por SAFs, que ajudam a garantir a segurança alimentar dos povos indígenas. Esta abordagem pode ser considerada para outras áreas em consulta com os povos indígenas.
Para lidar com as áreas com altas taxas de desmatamento serão necessárias várias abordagens. No curtíssimo prazo o governo deve reforçar as medidas mais eficazes contra o desmatamento ilegal como o confisco e leilão de gado (Maia et al., 2011). Além disso, deve responsabilizar as empresas que se abastecem de produtos ilegais oriundos destas áreas, como alguns frigoríficos.
Para reforçar a prevenção e promover o uso sustentável das áreas, o governo deve instalar bases de vigilância permanentes e usar forças-tarefa para elaborar planos de manejo e formar conselhos gestores no caso de UCs. Ademais, o poder público (executivo e judiciário) deveria julgar e aplicar rapidamente as decisões referentes a regularização fundiária de APs. É essencial evitar processos judiciais que duram décadas e acabam sendo fatais para a conservação e para muitos envolvidos nos conflitos.
Para que o governo consiga atuar rapidamente será necessário ampliar parcerias com universidades, institutos de pesquisa e prestadores de serviço. Essas parcerias seriam úteis tanto para aproveitar os profissionais altamente capacitados fora do quadro governamental quanto para usar de estruturas mais ágeis para a aplicação dos orçamentos já disponíveis. Recentemente, o governo decidiu se utilizar das concessões para agilizar os investimentos em infraestrutura, o que mostra uma abertura para o uso desta abordagem para as APs.
A solução de alguns dos problemas sistêmicos dependerá de que as mais altas autoridades governamentais e líderes do setor privado (como construtoras e agentes financeiros) priorizem o sucesso das APs na Amazônia. Nesse sentido, uma das mudanças mais importantes é que eles coordenem seus projetos de infraestrutura com medidas de compensação e fortalecimento das APs. À medida que megaprojetos têm resultado em conflitos e degradação, a reputação do governo e das empresas envolvidas é questionada e os custos associados com disputas judiciais (como a paralisação de obras) aumentam. Além da conservação, governo e empresas ganhariam ao evitar estes desgastes.
Para facilitar uma visão sistêmica dos riscos ambientais de vários projetos de infraestrutura, o governo deveria realizar uma AAE (Avaliação Ambiental Estratégica), conforme recomendação do Tribunal de Contas da União (Acordão nº 464/2004). Assim, seria possível determinar, em escala regional, as medidas necessárias de mitigação e compensação de impactos ambientais. O nosso mapa que aponta as APs ameaçadas por projetos de hidrelétricas revela os locais onde essa estratégia deveria ser prioritariamente fortalecida.
ANEXOS
Para contextualizar a situação de acessibilidade, pressão, ameaça e vulnerabilidade a que as APs estão condicionadas, disponibilizamos a seguir mapas e tabelas descritivas para aquelas mais críticas da Amazônia Legal segundo as análises de desmatamento. O objetivo é subsidiar as recomendações para proteger cada uma das APs e retirá-las da condição de criticidade em que se encontram. Nas tabelas apresentamos cada um desses quatro aspectos mencionados acima, para os quais consideramos alguns indicadores:
Quadro 1. Aspectos e indicadores das Áreas Protegidas críticas da Amazônia Legal.
Anexo 1
Áreas Protegidas do ranking de maior média de perda
absoluta de floresta original entre 2009 e 2011
(3) Relatório da sentença do Processo nº 2002.37.00.003918-2/MA. Disponível em: <http://www.ma.trf1.gov.br/aviso/sentenca-awa.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2012
(4) Dias, C. L. 2010. O Povo Tembé da Terra Indígena Alto Rio Guamá: construindo vias de desenvolvimento local? Dissertação de mestrado em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia, Núcleo de Meio Ambiente, Universidade Federal do Pará. Disponível em: <http://www.ppgedam.pro.br/ppgedam/attachments/article/79/disserta%C3%A7%C3%A3o–CLAUDIONOR.pdf>. Acesso em: 7 ago. 2012.
(5) Funai, Despacho do Presidente de 27 de fevereiro de 2007, publicado no Diário Oficial da União de 28/02/2007. Disponível em: http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=28/02/2007&jornal=1&pagina=114&totalArquivos=160. Acesso em: 9 ago. 2012
6) Ação cautelar inominada de 18 de julho de 2012. Disponível em: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2012/arquivos/Belo_Monte_cautelar_Condicionantes.pdf/view?searchterm=condicionantes%20belo%20monte. Acesso em: 8
(7) Decisão da Justiça Federal de 31/07/2012 no processo nº 2007.36.00.012519-0/MT. Disponível em: http://maraiwatsede.files.wordpress.com/2012/08/decisc3a3o.pdf. Acesso em: 8 ago. 2012.
(8) Décima posição do ranking 1.
Anexo 2
Áreas Protegidas do ranking de maior média de
perda percentual de floresta original entre 2009 e 2011
Anexo 3
Áreas Protegidas do ranking de menor percentual de floresta remanescente