Sob a pata do boi : como a Amazônia vira pasto / [organização Rafael Ferreira ; coordenação Paulo André Vieira, Marcio Isensee e Sá]. — Rio de Janeiro : Associação O Eco, 2021.
PREFÁCIO
Por Paulo Barreto
Este é um livro sobre fracassos coletivos e um pouco de esperança.
No dia 19 de setembro de 2019, a população da cidade de São Paulo observou, assustada, o céu escurecer às 15h como se fosse noite. Esse fenômeno resultou da poluição provocada pela queima ilegal da Floresta Amazônica, distante quase quatro mil quilômetros. Uma poluição que provoca doenças respiratórias graves, matando milhares de pessoas todos os anos.
Um desastre evitável, pois o Brasil não precisa desmatar para aumentar a produção agropecuária. Há dezenas de milhões de hectares de pastos degradados no país, onde os fazendeiros poderiam aumentar a produção.
A continuação das queimadas é ainda mais frustrante considerando que há uma década várias instituições que compõem a chamada “cadeia da pecuária” prometeram controlar o desmatamento. Este livro conta o que deu errado com essas promessas. E seus poucos avanços.
Em 2009, o Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) processaram proprietários de 20 fazendas, multadas por crimes ambientais, e 11 frigoríficos, por comprarem gado dessas fazendas. Além disso, o MPF recomendou a mais de 200 redes de supermercados e indústrias que não adquirissem produtos dos frigoríficos que haviam comprado gado das fazendas irregulares.
Simultaneamente, o Greenpeace realizou uma campanha global alertando grandes redes de supermercados, e indústrias compradoras de produtos dos frigoríficos, sobre os riscos de adquirirem carne e couro de áreas com desmatamento ilegal. As duas ações resultaram em desdobramentos inéditos na história do combate ao desmatamento da maior floresta tropical do planeta.
O foco na pecuária foi certeiro, pois quase 80% do desmatamento na Amazônia é para instalação de pasto.
Com a pressão das campanhas e do mercado, os grandes frigoríficos que abatiam gado na região assinaram um compromisso público com o Greenpeace e um termo com o MPF (o TAC da Carne), se comprometendo a, entre outras medidas, reduzir o desmatamento na Amazônia. Iniciados no Pará, esses acordos se espalharam por outros estados da Amazônia Legal, criando a expectativa de que poderiam ser um instrumento promissor contra o desmatamento. Foi a primeira vez que um programa logrou trazer à mesa de negociações os grandes frigoríficos nacionais.
Os dois acordos criaram grandes expectativas de mudanças. Porém, seus impactos no desmatamento foram abaixo do esperado. O que houve? Por que uma estratégia tão astuta fracassou em seu principal objetivo?
As reportagens conduzidas pelo ((o))eco mapeiam a responsabilidade da cadeia da pecuária na tragédia do desmatamento. Contam as histórias de pequenos e grandes fazendeiros que desmatam ilegalmente. Revelam vários casos em que os frigoríficos cumpriram apenas parcialmente o seu papel no acordo, e outros em que nunca fizeram acordo contra o desmatamento. Mostram que as grandes redes de supermercados, que juram compromisso contra o desmatamento, continuam comprando de frigoríficos que não controlam a origem do gado, desde as fazendas de cria e recria.
((o))eco também demonstra que bancos e gestoras – que dizem ter responsabilidade ambiental – financiam direta ou indiretamente frigoríficos que continuam a contribuir para o desmatamento. O BNDES não cumpriu suas diretrizes de exigir que os frigoríficos adotassem o rastreamento do gado desde o nascimento. Como principal banco financiador do setor, o cumprimento dessa exigência poderia ter sido transformador.
As limitações do MPF também aparecem nas reportagens. O ministério ordenou que o Ibama fiscalizasse os frigoríficos descomprometidos com o desmatamento. Mas órgãos públicos estaduais proibiram o acesso a informações que permitiriam ao Ibama identificar o transporte de gado de áreas envolvidas com desmatamento ilegal. Além de prejudicar as investigações, isso dificulta que os frigoríficos controlem a origem do gado desde o nascimento. Após os resultados de auditorias sobre a execução do TAC, o MPF no Pará preferiu dar mais uma chance para os frigoríficos que não cumpriram adequadamente o acordo.
Onde há esperança? Além dos paulistas, que sentiram no nariz o incômodo das queimadas, muita gente já entendeu que o desmatamento é indesejável. A principal novidade é a cobrança crescente de investidores e gestores financeiros. A crise climática já causa perdas financeiras derivadas de secas, nevascas, furacões, queimadas e enchentes mais frequentes e extremas. Por isso, alguns investidores cansaram de promessas e tiraram dinheiro do setor que mais contribui com as emissões brasileiras de gases causadores das mudanças climáticas. Os três maiores bancos privados operando no Brasil — Itaú Unibanco, Bradesco e Santander — prometeram cooperar pela conservação da Amazônia. E elegeram a pecuária como item prioritário. Resolver uma tragédia coletiva precisa desse tipo de aliança. Se eles cumprirem suas promessas, as soluções já existem.
Os jornalistas do ((o))eco contam casos de fazendeiros que já aumentam a produção sem desmatar. E revelam as tecnologias disponíveis para monitorar o desmatamento (por imagens de satélite) e o trajeto do gado ao longo da sua vida. Quem desmata não ficará mais escondido. Sem mercado e sem financiamento, não haverá incentivo para o desmatamento. E abrirá espaço para quem produz de forma mais limpa.
As reportagens que compõem este livro surgiram da troca de ideias com o jornalista e economista Eduardo Pegurier, ex-editor do ((o))eco. Quando o MPF iniciou o TAC da pecuária, eu me preparei para estudar como seriam sua execução e seus impactos. Além dos estudos que revelariam os processos e números sobre o TAC, sabíamos da importância de reportagens que mostrassem os casos e personagens que fariam o acordo progredir ou fracassar. Mas sabíamos também que a imprensa generalista teria dificuldade de cobrir essas histórias com o fôlego necessário. Seria preciso um projeto especial que não desgrudasse do tema. Então Eduardo montou equipes que conseguiram fazer isso brilhantemente. Os jornalistas buscaram os principais personagens, onde quer que eles estivessem: em assentamentos de reforma agrária, em grandes fazendas, em frigoríficos, ou em escritórios distantes da região, fosse em Brasília, no Rio de Janeiro, em São Paulo ou em Oslo (capital da Noruega).
Para mim, foi um prazer conversar com as equipes do ((o))eco para discutir os temas a cobrir e os personagens a entrevistar. Imaginamos que seria uma novela com vários núcleos. Espero que a novela do desmatamento esteja nos seus capítulos finais.
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