Em 2009, ações do MPF do Pará levaram o governo do estado e proprietários de frigoríficos na Amazônia multados por irregularidades ambientais a assumirem compromissos para, entre outras coisas, reduzir o desmatamento na Amazônia. Para isso, os frigoríficos assinaram um Termo de Ajustamento de Conduta se comprometendo a só comprar gado de fazendas que atendessem a requisitos socioambientais. Ao mesmo tempo, uma campanha do Greenpeace contra a pecuária ilegal levou quatro dos principais frigoríficos do país na época a assinarem com a organização um compromisso público voluntário pelo desmatamento zero.
Os dois tipos de acordo resultaram em mudanças significativas na cadeia da pecuária. Por exemplo, a proporção de fazendas fornecedoras de carne para o frigorífico avaliado registradas no Cadastro Ambiental Rural subiu de aproximadamente 2% antes do acordo para 96% quatro anos após o acordo. Além disso, o percentual de fazendas que abasteciam o frigorífico avaliado e que haviam desmatado recentemente (entre 2009 e 2013) caiu de 36% antes do acordo para 4% depois do acordo. Porém, o impacto dos acordos no desmatamento foi enfraquecido por duas razões. Primeiro, pelo enfraquecimento das leis ambientais, com a anistia de parte das áreas desmatadas pelo novo Código Florestal em 2012. Segundo, pelo escopo do TAC ser limitado às fazendas de engorda e por fragilidades que favorecem a comercialização de gado de origem ilegal por mecanismos de vazamento (venda para frigoríficos que não cumprem o acordo) e de lavagem (venda de gado de origem irregular por meio de fazendas regulares). Estas falhas refletem vulnerabilidades na produção, armazenamento, controle de qualidade e acessibilidade das informações necessárias para assegurar o cumprimento do TAC, além de falhas na fiscalização do seu cumprimento (por exemplo, o atraso de quatro anos na auditoria prevista para o primeiro ano do acordo).
Para melhorar o desempenho dos acordos, recomendamos implementar e divulgar as auditorias independentes sistematicamente; aumentar o registro e a confiabilidade do Cadastro Ambiental Rural; garantir e ampliar o acesso a dados necessários para o monitoramento do TAC, como a Guia de Transporte Animal; monitorar todo o rebanho, inclusive das fazendas fornecedoras indiretas (isto é, aquelas especializadas em cria e recria); e punir fazendeiros e frigoríficos que burlaram sistemas de controle. Além disso, será necessário aumentar a capacidade da secretaria de meio ambiente para licenciar as fazendas que buscarem a regularização ambiental.
Na última década, o poder público e campanhas ambientais ampliaram o foco de ações contra o desmatamento e passaram a incluir as empresas que compram de áreas desmatadas recentemente. Em alguns países, este tipo de ação tem resultado em acordos de compradores de gado, soja, óleo de palma e outros para evitar o desmatamento (Greenpeace International, 2006, 2009a, 2010; The Consumers Good Forum s/d). Como esses tipos de acordos são relativamente novos, há poucas análises sobre seus efeitos (Ver caso da moratória da soja em Gibbs et al 2015a). Neste relatório, analisamos os efeitos de um acordo com vinculação legal entre frigoríficos e o Ministério Público Federal (MPF) no Pará contra o desmatamento a fim de aprender lições que possam ajudar a melhorar o desempenho deste tipo de acordo para a conservação florestal na Amazônia e em outras regiões do planeta.
Em junho de 2009, o MPF e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) processaram proprietários de 20 fazendas multadas por irregularidades ambientais e 11 frigoríficos por comprarem gado oriundo dessas fazendas[1]. Os procuradores também recomendaram a 69 redes de supermercados e indústrias que não adquirissem produtos dos frigoríficos que haviam comprado gado das fazendas envolvidas em crimes ambientais (MPF/PA, 2009). Simultaneamente às ações do MPF e do Ibama no Pará, o Greenpeace lançou uma campanha contra a pecuária ilegal revelando empresas que compravam produtos oriundos de fazendas ilegais (Greenpeace, 2009a).
Como resultado destas ações do poder público e do Greenpeace, 35 redes varejistas e indústrias suspenderam seus contratos com os frigoríficos acusados pelo MPF (MPF/PA, 2009); e a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) anunciou, em agosto de 2009, que demandaria de seus fornecedores uma certificação de origem da carne (Munhoz & Bonanome, 2009).
Em consequência desses boicotes, em julho de 2009, proprietários de frigoríficos no Estado do Pará assinaram Termos de Ajuste de Conduta (TAC) com o MPF visando três objetivos: reduzir o desmatamento, coibir trabalho análogo a escravo e conflitos indígenas e estimular a restauração de áreas desmatadas ilegalmente de acordo com o Código Florestal. Para isso, os frigoríficos se comprometeram a só comprar gado de fazendeiros que atendessem a requisitos socioambientais. Especificamente, os frigoríficos e exportadores de gado assumiram os seguintes compromissos em relação às fazendas fornecedoras diretas do gado a ser abatido:
O TAC estabelece ainda que o fornecedor que desmatar será imediatamente excluído após a comunicação do MPF às empresas. O MPF também estabeleceu que os frigoríficos devem pagar multa de R$ 5,0 por hectare da fazenda fornecedora sem conformidade com as exigências do TAC[4]. É importante destacar que o TAC original no Pará não obrigava os frigoríficos a controlarem os fornecedores indiretos[5] (fazendas de cria e recria que vendem bezerros e novilhos para as fazendas de engorda), pois inexistia um sistema que permitisse o rastreamento de todo o gado. Nos acordos firmados a partir de 2013, o MPF e as empresas se comprometem, em um prazo de 24 meses, a envidar “esforços para incentivar a implementação de um sistema público de rastreabilidade, que tenha por finalidade garantir dados sobre a origem e destino do gado, desde a fazenda de produção até o consumidor final.” (MPF, 2013).
O MPF também demandou que o governo do Pará assinasse um compromisso para acelerar a adoção de políticas públicas associadas à gestão ambiental, como o aparelhamento e a capacitação dos órgãos públicos ambientais e fundiários. O governo prometeu disponibilizar um montante de até R$ 5 milhões (aproximadamente US$ 1,66 milhões) anuais para a contratação de uma auditoria independente para a verificação do cumprimento dos TACs.
Esta ação do MPF do Pará focada no setor pecuário resultou em vários desdobramentos. Em julho de 2009, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), um dos principais financiadores dos frigoríficos, determinou novas diretrizes socioambientais para financiamento ao setor pecuário. Os frigoríficos financiados deveriam adotar um sistema de rastreabilidade do gado a partir de 2010, a ser concluído em 2016 (Anexo I). No segundo semestre de 2014, todo o gado abatido deveria ter sido rastreado por pelo menos seis meses (Ver detalhes em BNDES, 2009a). Entre 2010 e 2014, outros frigoríficos assinaram acordos com o MPF em Mato Grosso, Acre, Rondônia e Amazonas (Figura 1), somando cerca de dois terços dos abates em frigoríficos inspecionados pelo governo federal (Serviços de Inspeção Federal – SIF).
A campanha do Greenpeace, por sua vez, resultou em outro acordo. Em outubro de 2009, quatro dos principais frigoríficos do país na época (Marfrig, Bertin[6], JBS e Minerva) assinaram com a organização um compromisso público voluntário pelo desmatamento zero (Greenpeace, 2009b). Além de não comprar gado oriundo de áreas desmatadas após a assinatura do acordo, os frigoríficos se comprometeram a iniciar o controle dos fornecedores indiretos, que não estava contemplado no TAC. Para tanto, os frigoríficos buscariam estabelecer uma parceria com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que a partir de dezembro de 2013 passaria a restringir a emissão de Guias de Transporte de Animais (GTA) para gado oriundo de áreas embargadas pelo Ibama por desmatamento ilegal (Quadro 1). Se o Mapa aprovasse esta nova abordagem – uma GTA Verde -, a agência sanitária estadual não autorizaria uma fazenda de cria embargada a transportar os bezerros para uma fazenda de engorda. Esta restrição deveria desestimular o desmatamento em toda a cadeia de suprimento.
Neste relatório, resumimos os resultados da implementação do TAC pelo maior frigorífico no Pará (JBS) até 2014, focando no cadastramento das fazendas no CAR e na taxa de desmatamento nas fazendas que venderam para os frigoríficos avaliados. As plantas frigoríficas avaliadas são responsáveis por 30% do abate no Pará e eram as únicas que possuíam um sistema de monitoramento do desmatamento antes e depois do acordo. Em seguida, avaliamos os fatores que afetam o desempenho do TAC e os riscos para seu sucesso. E, finalmente, recomendamos como melhorar o desempenho dos acordos para atingir o desmatamento zero.
O relatório resume dados de um estudo meticuloso publicado em revista científica (Gibbs et al, 2015b) com base em dados públicos e em entrevistas com fazendeiros e gerentes de frigoríficos. Além disso, expande e atualiza as análises sobre a gestão do TAC por parte do MPF e do governo do Pará.
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[1] As ações demandavam o pagamento de R$ 2 bilhões por danos ambientais decorrentes do desmatamento de 157.000 hectares.
[2] Dados do CAR do Pará estão disponíveis em http://monitoramento.sema.pa.gov.br/simlam/index.htm
[3] Ressalvadas as hipóteses em que o licenciamento não tenha ocorrido por culpa exclusiva do órgão público competente.
[4] Os recursos arrecadados seriam destinados ao Fundo Estadual de Meio Ambiente (Fema).
[5] Acesse o plano de trabalho da JBS referente ao acordo com o Greenpeace em: http://www.jbs.com.br/sites/jbs.com.br/files/acordo_greenpeace_plano_de_trabalho_jbs_mar_2014_0.pdf
[6] O frigorífico Bertin foi incorporado ao grupo JBS.
QUADRO 1
O que é a GTA?
A GTA é uma autorização de transporte de animais emitida pelos órgãos estaduais de vigilância animal a fim de facilitar o controle de doenças. As GTAs fazem parte de um sistema nacional coordenado pelo Mapa e geridas localmente pelas Agências de Defesa Agropecuária dos estados (no Pará, a Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará). As GTAs acompanham o transporte de gado e contêm, entre outras, informação sobre a quantidade e finalidade dos animais transportados (por exemplo, cria, engorda, abate), classes de idade, nome e número de identificação (CNPJ e CPF) de quem vende e de quem compra os animais.
Figura 1. Frigoríficos registrados no Serviço de Inspeção Federal que assinaram ou não Termos de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal ou o acordo com o Greenpeace. A localização foi coletada no campo usando GPS e imagens de alta resolução via Google Terra.
Em 2006, o governo do Pará demandou que os fazendeiros registrassem seus imóveis no CAR, mas apenas 0,19% das fazendas que venderam para os frigoríficos analisados estavam registradas no início da ação que resultou no TAC em junho de 2009. Os efeitos do TAC de 2009 foram notáveis (Figura 2). No início de 2010, logo depois de os frigoríficos terem exigido o CAR de seus fornecedores, cerca de 60% das compras mensais desses frigoríficos foram de fazendeiros cadastrados. Em 2013, esse percentual aumentou para 96%.
No caso específico do JBS, 85% dos seus 56 fornecedores afirmaram terem se registrado no CAR por causa das exigências do frigorífico estabelecidas pelo TAC, pois queriam continuar vendendo gado para a empresa. Isso demonstra que o TAC rapidamente aumentou o monitoramento de uso da terra e de desmatamento no nível da propriedade. Além disso, Gibbs et al (2015b) demonstram que as fazendas na região de estudo que não forneciam para o JBS demoraram mais tempo para se cadastrar no CAR (Figura 2B). De qualquer forma, em 2013, mais de 80% das terras agrícolas no Pará estavam cadastradas no banco de dados do CAR online, sendo que muitas das 105.000 propriedades aderiram ao sistema no início de 2013. Este segundo aumento de registros em 2013 é compatível com ações do governo federal e estadual de apoio ao cadastramento de pequenos produtores, campanha publicitária realizada pelo governo do Pará e engajamento de municípios que desejavam sair da lista de municípios críticos de desmatamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA) (Pará, 2014).
Outro resultado importante da assinatura do acordo foi que o JBS reduziu as compras de fazendas que desmataram ilegalmente. O percentual de fazendas que abasteciam o frigorífico e que haviam desmatado recentemente (entre 2009 e 2013) caiu de 36% antes do acordo para 4% depois do acordo. Assim, o acordo provavelmente foi um dos fatores que ajudaram a queda mais rápida do desmatamento ocorrida no Pará entre 2010 e 2012 em relação ao restante da Amazônia (Figura 3), onde o acordo não existia ou tinha outro prazo de implementação – por exemplo, a obrigatoriedade de exigir o CAR no Mato Grosso só passou a valer a partir de maio de 2013 para poucos frigoríficos que assinaram o TAC. Após 2012, a taxa de desmatamento voltou a aumentar no Pará e no restante da Amazônia (Figura 3), coincidindo com um enfraquecimento das leis ambientais (anistia de parte das áreas desmatadas estabelecia pelo novo Código Florestal em 2012) e com limitações do TAC, que serão explicadas na seção seguinte.
Figura 2. O momento de registos de propriedades no Cadastro Ambiental Rural. A – A parcela de transações mensais dos frigoríficos avaliados com as fazendas de engorda registadas aumentou drasticamente após o TAC. B – Os frigoríficos avaliados incentivaram o registro rápido de propriedades fornecedoras imediatamente após os TACs (linha vermelha). O registro de outras propriedades em um raio de 10 km dos frigoríficos avaliados, mas que não vendem para eles, subiu muito mais tarde, em 2013 (linha azul).
Figura 3. Taxa de desmatamento no Pará e no resto da Amazônia entre 2008 e 2014.
Gibbs et al (2015) também identificaram mudanças nas características das fazendas fornecedoras do JBS antes e depois do TAC (Figura 4). Os fornecedores depois do acordo eram, em média, fazendas maiores e com menor percentual de floresta remanescente (15,2%); e um terço dos fornecedores após o acordo tinha menos de 1% de floresta remanescente. Isso indica que uma parte das fazendas dispostas a cumprir o acordo tinha pouca floresta para desmatar.
Estes dados também permitem projetar o desafio para o cumprimento de outro objetivo do acordo: estimular a restauração de áreas desmatadas ilegalmente. De acordo com o Código Florestal, as fazendas deveriam ter pelo menos 50% de floresta nesta região da Amazônia, mas na média possuem entre 15 e 20% na área estudada. Isso significa que estes fornecedores deverão ou restaurar a floresta em parte de suas fazendas ou compensar a área desmatada em outros imóveis rurais com área florestal acima do mínimo exigido por lei ou por meio da aquisição de áreas que devem ser desapropriadas dentro de Unidades de Conservação (Brasil, 2012). Estas opções deverão estar definidas para a obtenção da LAR nas secretarias de meio ambiente. O cumprimento do licenciamento, portanto, envolverá uma etapa mais custosa de preparação e execução destes planos.
Figura 4. Tamanho médio e proporção de floresta remanescente nas fazendas supridoras de gado para o JBS no sul do Pará antes e depois do TAC.
O TAC da pecuária resultou em mudanças significativas na cadeia da pecuária, mas o seu impacto no desmatamento foi enfraquecido por seu escopo limitado às fazendas de engorda e por fragilidades que favorecem a comercialização de gado de origem ilegal por mecanismos de vazamento e de lavagem (Figura 5). Estas falhas refletem vulnerabilidades na produção, armazenamento, controle de qualidade e acessibilidade das informações necessárias para assegurar o cumprimento do TAC (Anexo II), além de falhas na fiscalização do seu cumprimento.
Nas condições atuais, mesmo o frigorífico que possui um sistema para checar a regularidade das fazendas ainda recebe gado de origem ilegal direta ou indiretamente. Além disso, os que não cumpriram as restrições do TAC ainda não foram punidos.
A seguir explicaremos os mecanismos de lavagem e as limitações do acordo sobre o controle dos fornecedores indiretos.
Figura 5. Gado de origem ilegal pode ser comercializado de fazendas de cria e recria não consideradas pelo acordo e de fazendas de engorda irregulares que vendem para frigoríficos sem sistemas de controle eficazes (vazamento) ou por meio de fazendas regulares (lavagem).
• Lavagem
A lavagem é o processo de tornar aparentemente regular o gado de origem irregular. Alguns dos fornecedores diretos (fazendas de engorda) burlam os quesitos do TAC e não são detectados pelos sistemas de verificação usados pelos frigoríficos. Conforme nossos levantamentos, até o fim de 2014, havia dois modelos de verificação. As empresas maiores contrataram ou desenvolveram sistemas computacionais de verificação das informações, inclusive com o cruzamento dos mapas das fazendas com os mapas das áreas desmatadas e de outras áreas restritas, como embargos e unidades de conservação e terras indígenas. E outras empresas apenas verificavam se os dados de identificação dos fornecedores (nome, CPF ou CNPJ) estavam nas listas de registro no CAR, lista de embargo e trabalho escravo. Sem adotarem sistemas de cruzamento de mapas, este modelo de verificação é mais vulnerável conforme explicaremos a seguir.
O mapa do imóvel é fundamental para o controle. Entretanto, o registro no CAR é declaratório e a Sema do Pará ainda não validou as informações espaciais e documentais de aproximadamente 98% dos imóveis registrados. Aproveitando-se desta vulnerabilidade, pessoas registram informações falsas para burlar os controles. Por exemplo, a pessoa omite do CAR a área da fazenda com desmatamento ilegal. Assim, mesmo o frigorífico que cruza o mapa do imóvel com mapas de desmatamento não detecta áreas desmatadas ilegalmente. O frigorífico adquire o gado de origem ilegal que passou por uma “lavagem” na área registrada no CAR.
Além disso, a Sema tem permitido que pessoas registrem e retirem facilmente informações do CAR. Assim, pessoas registram fazendas no CAR apenas para gerar um comprovante momentâneo, que deixa de existir após sua remoção. Este tipo de operação permite fraudar informações sobre novos desmatamentos, a localização e o tamanho das fazendas. Os frigoríficos que não adotaram um sistema para cruzar os polígonos das fazendas com os polígonos do desmatamento consideravam estar cumprindo o TAC apenas verificando o comprovante de registro no papel, sem checar a ocorrência de desmatamento nas áreas supostamente registradas.
A retirada de cadastros pelo usuário de forma independente era permitida formalmente até maio de 2014. A partir desta data, supostamente apenas a Sema poderia excluir dados do CAR após a solicitação do declarante. Entretanto, em março de 2015, um técnico ainda simulou com sucesso a alteração de dados do CAR sem necessitar de autorização do órgão.
A lavagem também ocorre por falhas no controle de transporte de animais. Por exemplo, fazendeiros transportam boi gordo de fazendas irregulares (inclusive de áreas embargadas e de áreas protegidas) para as fazendas regulares antes da venda para os frigoríficos. Pelo menos dois modelos de fraude ocorrem: i) um único fazendeiro que possui várias fazendas e usa pelo menos uma delas para lavar o gado das outras irregulares; e ii)um fazendeiro que usa sua fazenda regular para vender o gado de outros fazendeiros irregulares (incluindo de vizinhos ou parentes). Neste caso, a lavagem ocorre tanto por meio do transporte físico do gado ou apenas pelo transporte virtual (realizado apenas nos registros das GTAs). Durante a pesquisa de campo, fazendeiros relataram que esta lavagem é uma prática comum e aceita uma vez que não é proibida pelo acordo.
No transporte virtual, é usada uma GTA para documentar a transferência de uma fazenda para outra, mas de fato o gado não é transportado. Depois, o fazendeiro que está lavando o gado emite outra GTA da fazenda que supostamente recebeu o gado até o frigorífico. Este tipo de lavagem, portanto, é possível pela fragilidade do controle do registro de animais nas fazendas e do seu transporte, que deve ser realizado pelas agências que cuidam de controle sanitário animal (Adepará, no caso do Pará). A Adepará poderia detectar estas manobras ao perceber uma rápida movimentação de gado entre fazendas, além do transporte de um grande número de animais muito acima da capacidade produtiva de uma dada fazenda.
A lavagem ocorre também pela facilidade em burlar os embargos das áreas desmatadas ilegalmente. Alguns fazendeiros alugam o pasto embargado para outro indivíduo sem registro na lista de embargo (nome e CPF ou CNPJ e mapa do imóvel). O arrendatário da área embargada, por sua vez, registra o imóvel no CAR em seu nome como arrendatário e registra o rebanho em seu nome na Adepará. Depois, o arrendatário vende o gado para frigoríficos que checam apenas se os dados de identificação do fazendeiro embargado não estão na lista de embargo. Este tipo de subterfúgio é facilitado pela falta de monitoramento frequente das fazendas embargadas, bem como pela falta de compartilhamento dos dados das áreas embargadas entre os órgãos ambientais e as agências de defesa animal e pela falta de rastreabilidade do rebanho. É relevante notar que o frigorífico que cruza o mapa da área embargada com o mapa do imóvel registrado no CAR deveria identificar este tipo de fraude.
• Vazamento
O vazamento ocorre quando a fazenda irregular encontra um comprador que adquire seu gado sem a verificação ou com a verificação parcial do cumprimento do TAC. Por exemplo, sabemos, a partir de entrevistas de campo, que fazendeiros passaram a vender para frigoríficos em estados fora do bioma amazônico, como o Tocantins, enquanto outros informaram que vendiam para outros frigoríficos locais ou para alguns exportadores de gado vivo que não exigiam o CAR ou que não verificavam os mapas de desmatamento.
• Atraso na auditoria
A ocorrência da lavagem e vazamento foi facilitada pelo atraso de quatro anos na auditoria independente prevista no acordo assinado pelo governo do Pará. A auditoria tem acesso aos dados da GTA, o que possibilita verificar o transporte de gado entre fazendas e até o frigorífico ou exportadores de gado vivo. Assim, é possível identificar a maioria dos mecanismos de lavagem e vazamento.
A primeira auditoria independente deveria ser realizada em 2010. Entretanto, somente no segundo semestre de 2013 foi realizada uma auditoria piloto em três estabelecimentos para desenvolver e testar o protocolo final: a unidade de Santana do Araguaia do frigorífico JBS Friboi, o curtume Durlicouros e a exportadora de gado vivo Kaiapós. Como o objetivo da auditoria foi desenvolver a metodologia e não cobriu todas as empresas signatárias do TAC, o governo do Pará e o MPF decidiram publicar apenas uma declaração geral sobre os resultados em vez de publicar o desempenho de cada empresa auditada. Segundo a declaração do MPF, o desempenho da auditoria foi satisfatório (MPF, 2014a). Entretanto, quando em maio de 2014 o MPF anunciou para um grupo de signatários não auditados o calendário e método da auditoria, vários deles reconheceram que não estavam verificando a ocorrência do desmatamento nos imóveis cadastrados no CAR, pois não adotaram um sistema próprio e nem contrataram tal serviço. Esta constatação resultou em vários desdobramentos (Quadro 2).
QUADRO 2
Desdobramentos do anúncio da auditoria
Em reuniões com o MPF e com o governo do estado vários signatários demandaram que a Adepará somente autorizasse o transporte de gado de origem legal (isto é, de fazendas registradas no CAR). Eles alegaram que já pagavam pela emissão das GTAs e que era injusto incorrer em mais custos com verificação de desmatamento nos imóveis no CAR.
Como resultado dessas reuniões, em maio de 2014 o governo do estado publicou um decreto[7] que obriga a Adepará a emitir a GTA apenas para fazendas cadastradas no CAR de acordo com um calendário: a partir de junho de 2014 para as operações interestaduais; e para as operações internas, a partir de uma data a ser definida em agosto de 2014 pelo Comitê Gestor (Coges) do Programa Municípios Verdes. Entretanto, este calendário foi estabelecido apenas em abril de 2015 conforme o tamanho do rebanho e localização da fazenda (Tabela 1). Por exemplo, a Adepará continuará emitindo GTAs para fazendeiros com rebanho de até 100 cabeças não cadastrados no CAR até dezembro de 2016.
Para satisfazer parte da demanda dos signatários, o MPF e o governo do estado solicitaram que uma empresa criasse um sistema de fácil consulta sobre o cumprimento dos quesitos do TAC pelos fazendeiros. O BusCAR, sistema independente criado pela empresa Terras, permite que qualquer interessado consulte as informações, que são públicas, sobre os fornecedores de gado usando o número do CAR ou de identificação do fornecedor (CPF ou CNPJ)[8]. Entretanto, o sistema não fornece informações não disponibilizadas publicamente, como os dados das GTAs. Outras empresas também disponibilizam tal serviço.
Depois disso, alguns frigoríficos ainda não auditados passaram a usar este sistema e a boicotar gado de fazendas que desmataram depois de 2009. Porém, recebemos informações de que algumas pessoas têm redesenhado o CAR para excluir as áreas que foram desmatadas e, assim, ficarem livres para vender. Estas manobras revelam uma ampla confiança na impunidade por parte dos fazendeiros. Ao mesmo tempo, alguns representantes de fazendeiros têm demandado algum acordo para que aqueles que desmataram após 2009 possam voltar a comercializar gado. O MPF e o Programa Municípios Verdes, do governo do Pará, estão avaliando tal proposta.
Tabela 1. Calendário limite para que a Adepará condicione a emissão da GTA ao cadastramento no CAR de acordo com o tamanho do rebanho do fazendeiro e a localização da fazenda.
• Fornecedores indiretos não rastreados
As fazendas que fornecem bezerros e novilhos para as fazendas de engorda ainda não são rastreadas. Nos TACs iniciais os frigoríficos se comprometeram a controlar apenas as fazendas de engorda das quais compram o boi gordo, enquanto que os frigoríficos que assinaram o acordo com o Greenpeace não convenceram o Mapa a adotar a GTA Verde até o momento. Em março de 2014, o JBS afirmou que os três grandes frigoríficos concordavam com a GTA Verde, mas ainda era necessário convencer o restante das empresas da Associação Brasileira de Exportadores de Carne (Abiec). Assim, as fazendas de cria e recria que desmatam ilegalmente ainda estão livres do controle dos frigoríficos.
O segundo fator que facilita o comércio de gado de origem ilegal é a falta da rastreabilidade individual do rebanho. Por exemplo, o BNDES não cumpriu a promessa de exigir a rastreabilidade do rebanho que abastece os frigoríficos por ele financiado.
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[7] Decreto nº 1.052/2014. Diário Oficial do Pará.
[8] O sistema BusCAR está disponível em: http://buscar.terras.agr.br:8080/buscar/inicial
Além da restrição de acesso aos dados da GTA, houve dois retrocessos recentes sobre a transparência de informações chaves para o cumprimento do TAC da pecuária. A portaria do MMA que regulamentou o CAR restringiu o acesso às informações que identifiquem os proprietários ou possuidores e suas respectivas propriedades ou posses, tais como CPF, CNPJ, nome, e as que associem as propriedades ou posses a seus respectivos proprietários ou possuidores (MMA, 2014). Desta forma, frigoríficos ou qualquer outro interessado ficariam impedidos de usar tais informações para checar o cumprimento de requisitos do TAC. É importante notar que, no caso do Pará, a Sema disponiliza o acesso aos dados do CAR.
Além disso, o MMA ampliou o prazo para o registro no CAR de 5 de maio de 2015 para maio de 2016. Isso significa que quem não se registrou não será punido até esta data. Desta forma, haverá um grande número de produtores ainda buscando mecanismos para a lavagem e vazamento da produção de origem ilegal. Até maio de 2015, metade da área cadastrável no Brasil foi cadastrada, segundo o MMA.
A análise da moratória da soja e do acordo do TAC mostram o potencial e limitações de agentes do agronegócio além da porteira da fazenda para contribuírem com a redução do desmatamento. A premiação e ampla divulgação destes novos tipos de acordos voluntários e legais (Exame.com, 2009; Revista Época, 2009; Instituto Innovare, 2012; MPF, 2014b; MMA, 2011; Amazônia SA, 2015; The Consumers Good Forum, s/d) certamente aumentarão a pressão para que os acordos existentes sejam cumpridos e para que o desmatamento seja eliminado de suas cadeias de suprimento. Quem cumprir os acordos legais e voluntários poderá ganhar com a ampla publicidade (por exemplo, manter e expandir mercados), enquanto que quem descumpri-los estará sujeito às penalidades legais (no caso de acordos legais), perda de reputação e às restrições dos mercados. Portanto, as empresas e governos que querem se livrar destes riscos deveriam rapidamente corrigir as falhas e ampliar as melhores práticas, conforme sugerimos abaixo.
A execução dos acordos envolve a gestão de grande número de atores e de informações e de riscos de falhas. O sucesso dos acordos dependerá do aprendizado rápido sobre o desempenho dos vários atores envolvidos, incluindo a análise das causas dos êxitos e das falhas e a identificação de fraudadores. O atraso de quatro anos do governo do Pará para a realização da auditoria permitiu o desenvolvimento de práticas de lavagem e vazamento. Para corrigir as falhas, é essencial realizar auditorias independentes sistematicamente – sem adiamentos. Os resultados das auditorias devem ser publicados para que todos os interessados (autoridades, frigoríficos, o varejo de carne, a indústria de produtos de origem animal e instituições financeiras) possam tomar decisões bem informadas. A divulgação dos resultados da primeira auditoria de todos os signatários do Pará que está sendo realizada será uma oportunidade para que os atores demonstrem seus compromissos com as correções necessárias, bem como a manutenção das boas práticas.
Embora o governo federal tenha ampliado o prazo para o registro no CAR, empresas e governos estaduais e municipais se beneficiariam do aumento do registro para evitar o desmatamento ilegal e o consequente risco de mercado. O condicionamento da emissão da GTA ao registro no CAR no Pará provavelmente induzirá ao registro, mas o prazo limite ainda é generoso para algumas classes de tamanho de rebanho (Tabela 1). Portanto, as empresas e financiadores do agronegócio deveriam fazer campanhas para ampliar o registro para reduzir mais rapidamente os riscos legais e de reputação associados ao gado de origem ilegal, independentemente do prazo estabelecido pelos governos.
Além disso, as Semas e o governo federal deveriam garantir a confiabilidade dos dados registrados no CAR por meio da validação e pela construção de mecanismos de segurança que evitem novas fraudes. Por exemplo, o Imazon está desenvolvendo um sistema que identifica e registra automaticamente qualquer mudança feita no CAR, além de comparar os dados declarados com as regras do novo Código Florestal. O uso do sistema é gratuito e, se adotado pelos governos estaduais e municipais da região, poderia evitar novas fraudes e identificar as pendências existentes no cadastro[9].
Os órgãos de controle sanitário argumentam que os dados da GTA são sigilosos e os dados de identificação dos proprietários passariam a ser sigilosos no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (SiCAR). Entretanto, há argumentos jurídicos e de mercado para aumentar a transparência sobre estes dados. Por exemplo, Édis Milaré, ex-procurador do Ministério Público de São Paulo, argumenta que frigoríficos e os bancos que são sujeitos a sanções por comprar ou financiar fazendas ilegais têm o direito à transparência sobre informações que precisam para cumprir sua obrigação de evitar impactos ambientais (Milaré, 2014). De fato, argumentamos que qualquer cidadão teria direito a ter acesso aos dados da GTA e do CAR dado o interesse de checar a origem da carne que consome ou de verificar se empresas onde gostaria de investir (por meio de compra de ações de frigoríficos ou investimentos lastreados no agronegócio[10]) cumprem as leis ambientais[11].
Além do mais, ao ampliar o acesso à informação da origem de produtos agropecuários, o Brasil se ajustaria à tendência internacional de maior transparência da cadeia de suprimento tanto por demandas de consumidores quanto de governos devido a preocupações sanitárias, de bem estar animal e socioambientais (Lind, 2014; Bosona & Gebresenbet, 2014).
Para assegurar o desmatamento zero será necessário monitorar todo o rebanho desde as fazendas de cria até as de engorda. O controle ideal envolveria o poder público demandar um sistema completo de rastreamento individual dos animais como já é feito por algumas fazendas do país que atendem ao mercado Europeu[12]. Outros países, como a Austrália (incluindo bovinos, caprinos e ovinos), Uruguai e Canadá, já adotaram tais sistemas para todo o rebanho por razões de mercado e controle de doenças.
Como grande parte da produção pecuária é consumida no Brasil, será necessária uma demanda nacional para ampliar o rastreamento individual dos animais. Além dos frigoríficos, outros participantes da cadeia da carne poderiam ser mais ativos nesta demanda. Por exemplo, se o BNDES cumprisse a diretriz que lançou em 2009 de exigir que os frigoríficos que financia adotassem o rastreamento individual, tal prática seria ampliada.
Enquanto o rastreamento individual inexiste, uma alternativa de curto prazo, mas menos precisa, seria o Ministério da Agricultura ou as agências estaduais de vigilância animal disponibilizarem os dados de transporte de animais entre as fazendas que são registrados pelas GTAs. Essas informações poderiam ser usadas por vários atores para verificar a origem do gado.
O poder público deve punir rapidamente fazendeiros e frigoríficos que fraudaram ou prestaram informações falsas para burlar o TAC da pecuária, como os registros falsos no CAR. A auditoria em andamento no Pará fornecerá informações que permitirão focar a fiscalização e punição dos infratores. Além disso, as Semas e o Ibama devem punir desmatadores em imóveis já registrados no CAR que já são identificáveis antes das auditorias do TAC. Por exemplo, Azevedo et al (2014) e Gibbs et al (2015a) demonstraram que o desmatamento tem ocorrido em imóveis registrados no CAR tanto em Mato Grosso quanto no Pará.
A demanda para o licenciamento deverá aumentar pela imposição do novo Código Florestal e pelos acordos pelo desmatamento zero. Os órgão deverão estar preparados para processar um grande número de pedidos de licenças e para disponibilizar aos interessados informações mais complexas. Por exemplo, quando o fazendeiro optar pela compensação da reserva legal fora das fazendas (seja em outros imóveis privados ou quando comprar áreas em Unidades de Conservação), a Sema deverá providenciar o mapa destas informações para quem quiser verificar o cumprimento do Código Florestal. Como alguns municípios estão credenciados a emitir as licenças, as mesmas deveriam ser padronizadas para facilitar o acesso à informação. Além disso, os órgãos deverão estar preparados para facilitar os mecanismos de compensação.
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[9] O sistema verifica a sobreposição com áreas protegidas, corpos d’água e outros imóveis rurais. Além disso, avalia automaticamente a adequação da Reserva Legal e da Área de Proteção Permanente no caso de municípios onde existe base cartográfica. O sistema está em fase de teste em Paragominas e será disponibilizado para mais nove municípios do Pará até agosto de 2015: Santarém, Don Eliseu, Ulianópolis, Novo Progresso, Monte Alegre, Brasil Novo, Novo Repartimento, Moju e Tailândia. (Comunicação Pessoal de Amintas Brandão Jr., 2015)
[10] As Letras de Crédito do Agronegócio e outros instrumentos foram criados pela Lei no 11.076/2004 (Brasil, 2004).
[11] Vale notar que a lista de áreas embargadas pelo Ibama e por alguns estados é insuficiente para a verificação do cumprimento da lei, pois estes órgãos não têm embargado todas as áreas desmatadas ilegalmente. Assim, empresas e indivíduos que querem garantia de que não compram de áreas desmatadas ilegalmente teriam que cruzar os mapas dos imóveis disponíveis no CAR com as imagens de desmatamento mensais disponibilizadas pelo Sistema de Alerta de Desmatamento do Imazon ou com as anuais disponibilizadas pelo Inpe.
[12] Há várias tecnologias disponíveis para a rastreabilidade, como a instalação de brincos ou chips em cada animal jovem e a documentação das fazendas nas quais o gado passou por toda a sua vida.
O quadro abaixo é a reprodução do slide de apresentação do BNDES (BNDES 2009a), que detalha o calendário para a implementação de sistemas de rastreabilidade por frigoríficos que recebem seu financiamento. No lançamento das diretrizes, o BNDES afirmou que as empresas poderiam “contar com o apoio do BNDES no desenvolvimento e implementação desses sistemas no país, que já conta com várias soluções de hardware e software disponíveis.” (BNDES, 2009b).
This post was published on 23 de junho de 2015
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