A nova lei criada a partir da Medida Provisória 458 pode agravar os conflitos no campo ao invés de resolvê-los, de acordo com declarações de autoridades e ativistas envolvidos com o tema à BBC Brasil.

O frade dominicano francês Henri de Roziers, coordenador da Comissão Pastoral da Terra em Xinguara (sudeste do Pará), diz que tem certeza de que isso vai acontecer.

“Essa lei é um processo de regularização de grilagem”, diz o religioso, que há 30 anos trabalha com questões fundiárias no Brasil, 15 deles no sudeste do Pará. “Só vai fragilizar ainda mais os pequenos agricultores da região.”

“Um estudo feito nos cartórios pelo Ministério Público já mostrou que, se somarmos todas as terras registradas no papel, o total é superior a duas vezes o tamanho do Estado. É claro que há muita fraude e muito conflito.”

O superintendente nacional de regularização fundiária na Amazônia Legal do Instituto Nacional de Colonização e Refoma Agrária (Incra), José Raimundo Sepeda, afirma, no entanto, que as autoridades vão estar atentas para coibir qualquer tentativa de pressão sobre pequenos agricultores que possa levar a mais conflitos.

“Se houver qualquer denúncia de irregularidade, nós vamos lá para fazer vistoria e garantir que a lei seja cumprida”, diz Sepeda.

Longe do Estado

O procurador da República em Belém, Ubiratan Cazetta, diz que muitas comunidades isoladas na Amazônia não têm qualquer acesso às autoridades ou mesmo conhecimento de como fazer valer seus direitos.

“As comunidades tradicionais, aquelas pessoas com menos acesso ao Estado, são mais facilmente enganáveis”, afirma Cazetta. “Elas vão ser expulsas por alguém com mais capacidade financeira ou bélica, e o Estado não vai ficar nem sabendo.”

“Nós não estamos falando de gente perto dos grandes centros urbanos, mas de gente que vive a 200, 300 quilômetros de pequenos municípios, que nem promotor têm.”

A nova lei determina que só poderão ser regularizadas terras que tenham sido ocupadas pacificamente e que não tenham nenhuma disputa pendente. Mas especialistas temem que, na prática, seja muito difícil descobrir exatamente onde estão esses problemas.

“Como inicialmente trata-se de um cadastramento apenas declaratório (cada interessado diz ao governo a área que possui), é muito real o risco de que grandes fazendeiros acabem tentando englobar áreas onde há posseiros menores”, diz o pesquisador Paulo Barreto, da ONG Imazon. “As disputas tendem a se intensificar.”

Novas ocupações

Outro fator que pode complicar a situação é a constância com que continuam acontecendo ocupações no Pará por movimentos de sem-terra, principalmente o MST.

Embora estas ocupações não tenham nenhuma relação direta com a MP 458, muitos colonos buscam as autoridades para fazer o cadastro, na esperança de que a papelada valha alguma coisa na hora de lutar pela terra.

“Nossa orientação é para que todos que procuram o Terra Legal (o programa de regularização fundiária do governo) sejam cadastrados pelos nosso agentes”, afirma Sepeda. “Depois, cada um dos cadastros vai ser examinado e os que não estiverem em conformidade com a nova lei serão cancelados.”

Na cidade de Dom Eliseu, onde o Ministério de Desenvolvimento Agrário realizou um mutirão de cadastramento do Terra Legal, diversos militantes de colônias do MST tentaram registrar os lotes que ocuparam.

A MP não contempla a situação deles por dois motivos principais: o primeiro e mais importante é o fato de eles estarem em uma terra da qual alguém já tem um título de posse. E mesmo que não fosse assim, eles estão nos lotes há menos de três anos, enquanto a lei determina que só podem ser regularizadas terras ocupadas até 2004.

Ainda assim, diversos conseguiram fazer o cadastro. “Eu fui, levei meus documentos e fiz o papel, mas, depois, vieram me dizer que vai ser cancelado”, lamenta a agricultora Cosma Lima Marinho, que ocupou um lote na Colônia Bananal.

Joãozinho Americano

Mas muitos agricultores da mesma colônia que foram ao mutirão não conseguiram nem fazer o cadastro, porque os agentes descobriram que a área em questão está dentro da fazenda do americano John Weaver Davis Junior – conhecido em Dom Eliseu como Joãozinho Americano – que vive na região com a família desde o início dos anos 60.

“Eu fui até lá, mas me disseram que nem valia a pena fazer cadastro”, disse o agricultor José Ailton de Oliveira Pereira, que planta mandioca e arroz, apenas para subsistência da família, no lote que ocupou. “É duro viver assim, sem saber se a terrinha em que a gente trabalha vai ser nossa mesmo.”

“Fazia mais de 20 anos que esta terra estava sem uso”, diz o presidente da Associação de Colonos do Bananal, Francenildo de Oliveira Moura. “Ele só veio atrás quando soube que a gente estava aqui.”

Mas Davis diz que exatamente aquele pedaço de terra tem grande valor para a família, porque é lá que está enterrado o pai dele, morto em um conflito com invasores ainda no início do anos 60.

“Nós não usamos de violência porque é contra as leis de Deus, mas quero convencer essas pessoas de que o pecado da invasão é errado e que eles têm que sair das minhas terras.”

Madeira e carvão

Durante décadas, a extração de madeira e a produção de carvão sustentaram a família Davis, mas agora grandes parte da área estão desmatadas e esgotadas.

É muito difícil, no entanto, saber exatamente que porcentual da floresta desapareceu. Os sem-terra dizem que praticamente tudo foi desmatado, enquanto o fazendeiros diz que ainda mantém 50% de mata nativa na sua área.

A área da fazenda também é incerta. Davis admite que a família já chegou a ter 100 mil hectares, mas diz que agora a propriedade não passa dos 10 mil.

A reportagem da BBC Brasil procurou as Secretarias de Agricultura e de Meio Ambiente na prefeitura de Dom Eliseu para conferir as informações, mas as autoridades disseram que não ter como confirmar ou desmentir as diferentes versões sobre a propriedade de Davis.


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