Pesquisa calculou o risco de derrubada da floresta dentro das áreas de compra dos frigoríficos da região
Apesar de já ocupar mais de 80% das áreas desmatadas na Amazônia com uma produtividade baixíssima, a pecuária ainda pode levar à derrubada de mais 3 milhões de hectares entre 2023 e 2025 caso não sejam adotadas medidas mais efetivas de fiscalização, como a rastreabilidade de todos os animais desde o nascimento. Isso equivaleria à devastação de um território maior do que o estado de Alagoas ou 20 vezes a cidade de São Paulo. A projeção faz parte de uma pesquisa que calculou pela primeira vez a ameaça de destruição da floresta dentro das zonas potenciais de compra dos frigoríficos ativos na região, publicada pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Essa estimativa é um dos três indicadores que o estudo usa para mostrar o quanto essas empresas estão expostas aos riscos de desmatamento da Amazônia. Os outros dois são a derrubada ocorrida e o quanto foi embargado pela devastação ilegal, ambas análises referentes ao que ocorreu dentro das áreas de provável aquisição de animais no período de 2008 a 2021.
A partir dessas informações, o trabalho apontou que a exposição dos frigoríficos à destruição da floresta passou de 6,8 milhões de hectares em 2016 (quando foi feito o primeiro levantamento das áreas de aquisição de animais), para 14,2 milhões de hectares em 2022. Um crescimento de 108% em seis anos, mesmo sob forte pressão para o setor desvincular-se desse crime ambiental.
Exposição ao desmatamento dos frigoríficos ativos em 2016 e 2022:
Conforme a pesquisadora Ritaumaria Pereira, uma das responsáveis pelo relatório, as companhias ficaram mais expostas principalmente por causa do aumento do desmatamento dentro de suas zonas de compra. “Entre 2016 e 2022, a destruição acumulada nessas áreas aumentou 113%”, observa a especialista. Além disso, o embargo adicional de 680 mil hectares e o aumento de quase três vezes no risco de devastação também contribuíram para essa maior exposição. Segundo a pesquisa, a ameaça de destruição futura foi estimada levando em conta variáveis importantes para o desmatamento, como por exemplo inclinação do terreno; distância para rios, estradas e frigoríficos; classe territorial (terras indígenas, unidades de conservação, etc); e proximidade de derrubadas recentes e antigas.
JBS é a empresa mais exposta aos riscos de devastação
O estudo também ranqueou os frigoríficos em relação à exposição deles às ameaças de destruição da floresta. A empresa mais crítica é a JBS, com quase 10 milhões de hectares desmatados, embargados ou sob risco de derrubada em suas zonas de compras. Em seguida está a Vale Grande, com pouco mais de 4 milhões de hectares. Masterboi, Minerva e Mercúrio completam o top 5, todas com mais de 2 milhões de hectares.
Indústria cresceu sem barrar a carne ilegal
Em relação ao número de plantas frigoríficas ativas, a pesquisa mostrou que passaram de 127 em 2016 para 145 em 2022, uma alta de 14%. Essas unidades pertenciam a 108 empresas diferentes no ano passado, 10% a mais do que no estudo anterior, quando foram mapeadas 98. Já a capacidade de abate ativa passou de 62 mil para 65 mil animais por dia no período, um crescimento de 5%.
Apesar desses aumentos, as companhias seguiram ineficientes para barrar a entrada de carne ilegal no mercado. Em 2016, apenas 35 empreendimentos haviam assinado o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) junto ao Ministério Público Federal (MPF) para não comprar animais oriundos da derrubada irregular da Amazônia, enquanto os outros 63 ignoraram o acordo. Em 2022, o número de empresas signatárias passou para 47, 34% a mais, porém a participação delas na capacidade de abate da região cresceu apenas 3% — passando de 68% para 71%. Ou seja, os 61 estabelecimentos que ainda não firmaram o documento são responsáveis por 29% do que pode ser abatido na região.
Além disso, mesmo os que assinaram o TAC não conseguem garantir que seus produtos são isentos da devastação ilegal, pois não há controle dos fornecedores indiretos. Ou seja: os frigoríficos prestam contas ao MPF apenas dos diretos, que apesar de estarem legalizados, podem ter adquirido animais de fazendas irregulares. Essa prática se chama “lavagem de gado” e poderia ser resolvida com a exigência da rastreabilidade de todos os bovinos desde o nascimento. Algumas empresas têm anunciado medidas nesse sentido, mas apenas para depois de 2025.
“É inviável aceitar esse prazo para um problema que se arrasta há décadas, ainda mais quando ele pode representar o desmatamento de uma área do tamanho de Alagoas. Isso aumentará significativamente as emissões brasileiras de gases de efeito estufa em um momento de emergência climática que traz consequências como as secas no Norte e as chuvaradas no Sul. Se forem tomadas medidas urgentes focadas nas principais zonas de compra, já será possível evitar grande parte da derrubada prevista”, explica o pesquisador Paulo Barreto, um dos autores do estudo.
Supermercados, bancos e investidores seguem coniventes com o desmatamento
Embora a participação da Amazônia Legal no abate de bovinos no Brasil tenha passado de 36% em 2009 para 38% entre 2020 e 2022, supermercados brasileiros e estrangeiros seguem coniventes com a relação da pecuária com o desmatamento ilegal, conforme o relatório. No mercado nacional, que em 2021 consumiu 75% da carne produzida no país, 96% dos supermercados convidados pelo índice Radar Verde a publicizar suas práticas para barrar a carne ilegal não responderam e os 4% que aceitaram participar não autorizaram a publicação de seus resultados.
Já em relação aos compradores internacionais, é o aumento das exportações que indica uma alta tolerância à destruição ilegal da Amazônia, conforme a pesquisa. A média anual do volume exportado pelos estados da região entre 2020 e 2023 cresceu 169% em relação aos três anos do início do TAC no Pará (2007, 2008 e 2009). No mesmo período, a proporção das exportações da região no total do Brasil passou de 26% para 42%. Ou seja: apesar de alguns movimentos de boicote, a regra geral é aceitar a ilegalidade. “Esses dados mostram que os países estão importando o desmatamento”, comenta Ritaumaria.
Assim como os compradores, o mercado financeiro também tem sido tolerante com o desmatamento ilegal da Amazônia para a pecuária. De um lado, bancos fornecem créditos sem critério de sustentabilidade para pecuaristas. O BNDES, por exemplo, não cumpriu sua própria regra de exigir, a partir de 2016, o rastreamento do gado desde o nascimento para fornecer financiamentos. De outro, investidores e fundos seguem aportando capital em frigoríficos, supermercados e bancos relacionados com o aumento da derrubada irregular. Assim como ocorreu com os supermercados, foram feitos poucos movimentos no sentido de punir os agentes financeiros por essa conivência.
Problemas antigos exigem ações urgentes
As décadas de aceitação do setor privado à ligação da pecuária com o desmatamento ilegal da Amazônia mostram que não haverá mudanças caso os governos não intensifiquem a fiscalização e a punição de infratores e passem a exigir o rastreamento individual do gado desde o nascimento.
“Quando a febre aftosa afetou as vendas da pecuária brasileira, houve um esforço governamental e privado para resolver o problema. Por meio do Programa Nacional de Erradicação e Prevenção da Febre Aftosa (Pnefa), a vacinação do rebanho passou de 10% para 98% entre 1998 e 2014, o que permitiu o aumento das exportações de 5,7% para 21,7% da produção. Precisamos que esse mesmo esforço seja feito para acabar com o desmatamento ilegal relacionado ao setor”, argumenta Paulo.
Além disso, o estudo destaca que os órgãos públicos precisam dar plena transparência aos dados de transporte dos bovinos (Guias de Trânsito Animal, GTAs) e das fazendas de origem (Cadastro Ambiental Rural, CARs) à sociedade civil, para que a fiscalização da cadeia também possa ser feita pelos consumidores.
“Já temos literatura científica e projetos de campo suficientes para mostrar que não precisamos mais desmatar nenhum hectare na Amazônia para aumentar a produção de carne. O que precisamos é melhorar a produtividade, que pode passar de um a pelo menos três bois por hectare com as tecnologias e as ofertas de crédito existentes”, completa Ritaumaria. Um estudo do Imazon dentro do projeto Amazônia 2030 mostrou que inclusive pode ser mais barato reformar pastos degradados do que devastar novas florestas.