Pará só teria retomado um dos mais de 10 mil imóveis cancelados por suspeita de grilagem nos cartórios em 12 anos

Pesquisa inédita mostrou que entre os títulos de terra cancelados há uma área de floresta 10 vezes maior do que a cidade de São Paulo

Foto: Lunae Parracho / Greenpeace

 

Estado que teve nos últimos sete anos as maiores áreas desmatadas na Amazônia, o Pará enfrenta um caos fundiário tão grave que pode barrar as políticas de desenvolvimento socioambiental. Uma pesquisa inédita recém publicada analisou 10.728 matrículas de imóveis canceladas nos cartórios por terem sido registradas ilegalmente e concluiu que pelo menos 332 realmente existem e poderiam voltar a integrar o patrimônio público. Porém, em 12 anos, apenas um imóvel foi retomado pelo estado.

Se somados, esses milhares de títulos cancelados chegam a uma área de 91,12 milhões de hectares, o que corresponde a 73% do Pará. O que seria impossível, pois o estado já possui quase 50% de seu território formado por áreas protegidas, como unidades de conservação e terras indígenas. Por isso, esses números já evidenciam dois grandes problemas nos registros dos cartórios: terras matriculadas em sobreposição a outras ou áreas fantasmas, que só existem no papel. Enquanto o primeiro caso pode ser relacionado com a tentativa de grilagem, o roubo de terras públicas, o segundo geralmente é motivado pela obtenção de empréstimos bancários. Ou seja: as pessoas registram nos cartórios terras que não existem para usá-las como hipoteca.

“Depois que o registro é feito, tem validade legal até que seja realizado seu cancelamento. Ou seja, a área pode ser vendida, usada como garantia em empréstimos, ter planos de manejo para exploração madeireira e até projetos de créditos de carbono. Por isso, enquanto o poder público não retomar as áreas griladas, seguirá incentivando crimes ambientais, conflitos por terra e ameaçando direitos territoriais de comunidades tradicionais”, alerta Brenda Brito, pesquisadora do Imazon e co-autora do estudo.

Entre os municípios, recordistas históricos em áreas desmatadas também ocuparam o ranking do maior número de títulos cancelados: São Félix do Xingu e Altamira. Juntos, eles concentram 50% da área atingida pela anulação das matrículas: 45,6 milhões de hectares.

Mapa do estudo mostra títulos cancelados por município do Pará

 

Estado pode retomar área de floresta 10 vezes maior do que a cidade de São Paulo

Desses mais de 10 mil títulos cancelados, 332 foram localizados pelos pesquisadores no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), onde somam 2,5 milhões de hectares. A partir dessa localização, os autores do estudo também cruzaram o georreferenciamento das áreas com dados de mudança no uso e cobertura da terra e descobriram que 811 mil hectares já haviam sido desmatados até 2020, o que corresponde a 34% desses imóveis. E, ao analisar o território derrubado, eles ainda mostraram que 77% estava sendo usado para a agropecuária.

Por outro lado, 1,5 milhão de hectares nesses imóveis ainda seriam áreas de florestas (60% do total), o que evidencia a urgência de serem retomados pelo poder público e destinados para a conservação. “Estamos tratando de uma área de floresta pública equivalente a dez vezes a cidade de São Paulo apenas nesses 332 imóveis. Eles podem estar em áreas do governo estadual ou federal, que precisam definir qual será o destino desses imóveis dentro das possibilidades previstas em lei. Isso ajudará no desenvolvimento socioambiental do estado, reduzirá os crimes ambientais e conflitos por terra e ainda trará segurança jurídica”, ressalta Brenda.

Decisão histórica do CNJ motivou cancelamentos

Chamado de “Combate à Grilagem de Terras em Cartórios no Pará: Uma Década de Avanços e Desafios”, o estudo é resultado do trabalho de cinco pesquisadores do Imazon e da UFPA para o projeto Amazônia 2030. A proposta da pesquisa foi analisar os resultados práticos de uma decisão histórica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 16/08/2010, que determinou o cancelamento administrativo (ou seja, sem necessidade de ação judicial) de todos os registros de imóveis que haviam sido feitos nos cartórios do Pará desrespeitando a Constituição Federal.

Isso porque a legislação estabelece um limite máximo de área que pode ser titulada pelos órgãos fundiários sem a prévia autorização do Congresso, que varia conforme a data da matrícula. Entre 16/07/1934 e 08/11/1964 esse limite foi de 10 mil hectares, entre 09/11/1964 e 04/10/1988 de 3 mil hectares e a partir de 05/10/1988 de 2,5 mil hectares. Com a decisão do CNJ, todos os registros de propriedades que desrespeitassem essas regras deveriam ser cancelados, inclusive quando houve divisão das áreas. Por exemplo: se a matrícula de um imóvel de 3 mil hectares tivesse sido desmembrada em duas de 1,5 mil hectares cada, ambas deveriam ser canceladas.

Na prática, essa decisão do CNJ transferiu para os supostos proprietários a responsabilidade de provar que as terras realmente foram adquiridas por eles conforme a lei, já que é possível regularizar as matrículas canceladas em caso de apresentação dos documentos que comprovem sua legalidade.

Caso Jari: a única área retomada pelo Pará

Em 2018, o governo do Pará registrou em seu nome a gleba “Arraiolos”, uma área de 386 mil hectares no município de Almeirim, que corresponde a mais que o triplo da cidade do Rio de Janeiro. Isso ocorreu após a retomada da Fazenda Saracura, um imóvel registrado ilegalmente em nome da empresa Jari S/A que foi alvo de cancelamento após a decisão do CNJ. Conforme a pesquisa, esse teria sido o único território retomado pelo estado apesar dos milhares de registros anulados.

Falta de digitalização e desorganização dos dados favorecem caos fundiário

O estudo aponta que para começar a resolver o caos fundiário instalado no Pará, é preciso primeiramente digitalizar e organizar os dados fundiários, possibilitando o cruzamento entre eles. A partir daí, o poder público precisa agir para retomar e destinar as áreas griladas. Porém, com a atual desorganização das informações públicas, não é possível saber o destino desses imóveis com as matrículas canceladas. Onde se localizam esses imóveis? Qual o tamanho? Em nome de quem estão registrados? Quantas matrículas são de terras que não existem? Quantos conseguiram comprovar sua legalidade e já foram regularizados? Quantos estariam buscando regularização fundiária no órgão de terra ou quantos sequer tentaram regularizar sua situação? São todas perguntas que a bagunça nos dados impossibilitou que os pesquisadores conseguissem responder. E, tratando-se de patrimônio possivelmente público, a sociedade tem o direito de receber estas respostas.

“Apesar de estarmos no século XXI, trabalhamos com fontes de papel nos órgãos públicos e nos cartórios. Se eu perguntar para o Iterpa (Instituto de Terras do Pará) ou para o Incra se emitiram um título em 1934 para a dona Maria, vai demorar dias, semanas ou até meses para receber a resposta, porque isso não está informatizado. É uma situação que incentiva a grilagem, não faz sentido nenhum. Hoje todo mundo discute crédito de carbono, mas não conheço nenhuma árvore que não fixe raízes no chão. Por isso, precisamos resolver esse caos fundiário urgentemente para termos a comprovação de quem é o dono legal da área antes de investir em carbono. Se não, ficaremos reféns de uma ecogrilagem”, explica o professor de Direito Agro-ambiental da Universidade Federal do Pará (UFPA) Girolamo Domenico Treccani, um dos autores da pesquisa.

Clique aqui para ler a pesquisa completa

This post was published on 30 de janeiro de 2023

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