A ocupação territorial na Amazônia tem sido marcada por diferentes formas de roubo de terra pública, ato conhecido como grilagem, que envolve, sobretudo, fraudes de registros de imóveis. No Pará, um estado particularmente atingido pela grilagem na Amazônia Legal, a tentativa de retomar terras públicas ilegalmente registradas em cartórios ganhou novos contornos em 2010. Naquele ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) cancelou administrativamente todos os registros de imóveis com tamanho acima da área limite permitida pela Constituição Federal.
Mas passados doze anos, quais os resultados práticos da decisão do CNJ? É possível afirmar que o histórico de grilagem nos cartórios do Pará chegou ao fim? Para elucidar estas perguntas os pesquisadores Girolamo Domenico Treccani, Aianny Naiara Gomes Monteiro, Dauana Santos Ferreira, Brenda Brito e Pedro Gomes analisaram a evolução do combate a este tipo de grilagem no estado.
Conforme o estudo, a decisão do CNJ cancelou registros de imóveis com as seguintes características:
Estes imóveis precisam de autorização do Congresso Nacional para abertura da matrícula, de acordo com a Constituição Federal. Antes do cancelamento, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA) já havia bloqueado tais matrículas em 2006. O bloqueio impedia a prática de novos atos de registro no imóvel, até que fosse tomada uma decisão final, que ocorreu com a deliberação do CNJ.
Para compreender o alcance dessa medida e identificar os avanços obtidos, o estudo usou dados de cartórios de registro de imóveis sistematizados pela Clínica de Direitos Humanos da Amazônia (CIDHA), do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Também foram analisadas decisões de ações judiciais sobre o tema bem como as normas emitidas pelo TJPA e pelo governo do Pará.
A estimativa aponta que a decisão do CNJ cancelou, pelo menos, 10.728 imóveis em 88 dos 144 municípios do Pará. Os títulos cancelados somados abrangem uma área equivalente a 73% do estado (91,12 milhões de hectares). Os municípios de São Félix do Xingu e Altamira concentram juntos 50% da área atingida pelos cancelamentos (45,6 milhões de hectares). No entanto, parte dessa área existia apenas no papel, já que se tratava de documentos de terra falsos registrados em cartório sem qualquer vinculação com uma área real.
O estudo também constatou que o cancelamento atingiu registros de imóveis formalizados principalmente a partir da década de 1970. Houve um pico na década de 1990, quando 35% das matrículas agora canceladas foram abertas, abrangendo quase metade da área (46%).
Em 332 dos imóveis cancelados foram identificados 1,5 milhão de hectares de áreas de florestas primárias ainda não desmatadas. Uma área de floresta pública alvo de grilagem equivalente a dez vezes a cidade de São Paulo.
Conforme a análise, é possível que alguns desses cancelamentos sejam desfeitos, se os detentores dos imóveis comprovarem a legalidade da matrícula. Essa possibilidade é chamada de requalificação e requer apresentação de vários documentos. Após a requalificação, a matrícula ainda precisa ser desbloqueada pelo juiz da vara agrária competente, para então ser considerada regular. Nestes doze anos, porém, o TJPA nunca divulgou resultados gerais sobre os imóveis alvos da decisão do CNJ.
Quando a regularização não é possível (por exemplo, por não atender requisitos legais), ou se não houve procura pelo processo de requalificação da matrícula, o poder público responsável pela área (estadual ou federal) deve retomá-la, se ela existir de fato. Isso ocorre matriculando o imóvel em nome do governo no cartório. A partir de então, o poder público pode destinar a área, ou seja, indicar qual será sua finalidade. Pode criar uma unidade de conservação ou projetos de assentamento, por exemplo. Porém, não há informações divulgadas sobre quantos casos teriam feito requerimento de regularização fundiária ou em quantos os governos (estadual ou federal) procederam à retomada dos imóveis.
O único caso conhecido publicamente de retomada de terra pelo governo estadual é uma área de 386 mil hectares no município de Almeirim, que corresponde a mais que o dobro da cidade de São Paulo. Trata-se de imóvel registrado ilegalmente em nome da empresa Jari S/A, cuja retomada o governo estadual requisitava desde 2004. O imóvel foi alvo da decisão do CNJ de 2010, mas apenas em 2018, e após uma ação judicial específica, o estado registrou o imóvel em seu nome.
No entanto, até o momento não há notícias de que a área tenha sido destinada para outra finalidade, incluindo a regularização de territórios de comunidades presentes na região. Esse caso exemplifica a complexidade de resolver em definitivo o problema dos imóveis com registros ilegais em cartório, incluindo a necessidade de um esforço multi-institucional para atribuir uma destinação adequada ao imóvel.
O estudo aponta que a decisão do CNJ foi um importante marco no combate à grilagem de terras no Pará, mas que ainda é necessário aumentar a transparência sobre seus resultados efetivos. Além disso, para aumentar a segurança fundiária no estado será essencial que o TJPA e o governo do estado informem com transparência quais imóveis foram alvo da decisão, quantos conseguiram regularização após a decisão e quantos ainda precisam ser retomados e destinados. Para isso, é crucial que o TJPA avance na implementação das regras que preveem a digitalização dos serviços dos cartórios de registros de imóveis e que disponibilizem esses dados para órgãos como o Ministério Público.
Baixe o estudo completo aqui
This post was published on 27 de janeiro de 2023
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