Alice Thuault*, Brenda Brito**e Priscilla Santos
A criação de fundos ambientais e florestais é apontada como uma forma de captar e aplicar recursos para gerar incentivos à manutenção da floresta em pé, no âmbito das discussões internacionais e nacionais sobre a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+). Para contribuir com a criação e a implementação desses fundos em nível estadual, analisamos quatro experiências nos Estados do Pará e Mato Grosso. Nossa análise revelou graves deficiências na gestão desses fundos. Para aperfeiçoá-los recomendamos: tornar as regras de funcionamento transparentes; adotar mecanismos de participação da sociedade civil e ampliar a transparência e o acesso à informação sobre a execução financeira dos fundos e sobre o impacto dos projetos apoiados.
Desmatamento e degradação florestal contribuem com aproximadamente 17% das emissões globais de Gases do Efeito Estufa (GEE)[1]. Desde 2005 diferentes países negociam a nível da Convenção Quadro das Nações Unidas para Mudança do Clima a criação de incentivos para diminuir essas fontes de emissão. Em 2010 houve um marco nessas negociações com a inclusão oficial desses incentivos nos Acordos de Cancún, durante a 16ª Conferência das Partes para a Convenção Quadro do Clima (COP 16) realizada no México. Esses acordos preveem ações de redução de desmatamento e de degradação florestal, conservação e aumento de estoques de carbono florestal, além de manejo sustentável de florestas. Esse conjunto de ações é conhecido pela sigla REDD+.
Além das discussões internacionais, diferentes esferas de governo no Brasil têm debatido a criação de uma estratégia de REDD+ que possa oferecer incentivos para a conservação e o uso sustentável das florestas em diversos biomas, em especial na Amazônia. Na esfera nacional, o assunto tem sido tratado pelo Executivo e pelo Legislativo. Por exemplo, em 2010, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) criou Grupos de Trabalho para discussão de um regime nacional de REDD+. No Congresso Nacional tramita atualmente o Projeto de Lei nº 195/2011, que pretende criar um sistema nacional de REDD+.
Há três pontos chaves sendo discutidos para a formação e governança de um regime nacional de REDD+ no Brasil: i) arranjos institucionais (quem irá gerenciar o mecanismo e como será feita a integração entre níveis de governo); ii) geração e repartição de benefícios (como benefícios financeiros serão calculados e quem poderá recebê-los); e iii) financiamento (quais serão as fontes de recursos). Um elemento fundamental que perpassa esses três pontos é a capacidade de administração e de direcionamento dos recursos financeiros para REDD+.
Nesse sentido, nos útlimos anos o Brasil tem criado fundos para captação e aplicação de recursos financeiros ligados a REDD+, como é o caso do Fundo Amazônia e Fundo Clima (apesar de este último não ser específico para REDD+)[2]. Nos Estados da Amazônia, a criação de fundos também é apontada como um elemento do arcabouço financeiro para REDD+ no nível subnacional. Por exemplo, no Acre, a Lei Estadual nº 2.308/2010, que institui o Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais, estabelece que os recursos desse sistema serão administrados por dois fundos estaduais: Fundo Estadual de Florestas e Fundo Especial de Meio Ambiente[3]. Outros três Estados da Amazônia (Mato Grosso, Amazonas e Pará) também discutem a criação de fundos em minutas de projetos de leis sobre o assunto[4].
Para que esses fundos possam contribuir eficientemente com a implementação de ações de REDD+, eles devem ser administrados de acordo com princípios de transparência, participação pública, capacidade de execução e de prestação de contas para a sociedade. Além disso, os novos fundos devem ser construídos a partir de lições aprendidas com fundos ambientais e florestais já existentes para evitar a repetição de problemas de gestão e incentivar boas práticas. Neste O Estado da Amazônia avaliamos a situação da governança de quatro fundos estaduais no Pará e Mato Grosso.
Selecionamos quatro fundos florestais ou ambientais que possuem relação com atividades na área florestal em Mato Grosso e no Pará, os Estados com as maiores taxas de desmatamento na Amazônia[5]. Os fundos selecionados foram: Fundo Estadual de Meio Ambiente do Mato Grosso (Femam/MT), MT Floresta, Fundo Estadual de Desenvolvimento Florestal do Pará (Fundeflor) e Fundo Estadual de Meio Ambiente do Pará (Fema/PA). Cada fundo possui um órgão administrador e objetivos próprios (Tabela 1).
Para a análise, coletamos informações por meio de revisão da legislação e entrevistas com funcionários dos órgãos gestores dos fundos e de instituições de controle (Ministério Público Estadual – MPE e Tribunal de Contas do Estado – TCE). A coleta de dados foi orientada por oito indicadores de governança baseados nos princípios citados na seção anterior. Cada indicador possui elementos de qualidade que orientam a avaliação (Tabela 2)[6]. A partir das informações coletadas, aplicamos os conceitos fraco, moderado ou forte dependendo da situação encontrada em cada indicador. O conceito forte refere-se ao cumprimento integral de todos os elementos de qualidade em cada indicador. O conceito moderado corresponde a um cumprimento parcial desses elementos. Já o conceito fraco se refere ao cumprimento insuficiente ou ao não cumprimento desses elementos.
Identificamos diversas falhas de governança que prejudicam o funcionamento dos fundos analisados. A maioria dos indicadores avaliados obteve conceito fraco (Figura 1). De fato, o conceito forte foi obtido apenas na avaliação de clareza de responsabilidades administrativas na gestão do MT Floresta e do Fundeflor (PA), além da capacidade administrativa do Femam (MT). Em geral, os principais problemas compartilhados pelos quatro fundos foram:
• Falta de transparência de procedimentos de avaliação de projetos: O acesso aos fundos por terceiros é dificultado pela falta de divulgação sobre os procedimentos de avaliação dos projetos. Nenhum fundo avaliado disponibiliza acesso às normas e critérios usados para avaliação das propostas de projetos. Além disso, os fundos também não enviam retorno aos proponentes sobre a avaliação das propostas caso elas não sejam aceitas;
• Inexistência de apoio técnico para auxiliar grupos com dificuldades de elaborar propostas: Não há procedimentos específicos ou apoio técnico-administrativo para facilitar o acesso aos fundos por grupos com dificuldade em elaborar propostas (por exemplo, populações que dependem da floresta, mas que possuem baixo nível de escolaridade);
• Insuficiência de monitoramento: Os fundos não dispõem de mecanismos adequados de monitoramento de impacto das atividades apoiadas. Isso impossibilita avaliar a eficiência dos incentivos econômicos fornecidos por esses fundos ou sua contribuição para a implementação de atividades florestais de base sustentável.
• Falta de transparência na prestação de contas: Nenhum fundo avaliado disponibiliza publicamente relatórios financeiros específicos e completos de forma regular. Informações pontuais podem ser encontradas nos relatórios anuais dos TCEs, mas são insuficientes. Por exemplo, no caso do Fema (PA), o TCE disponibiliza em seu site apenas os acórdãos de julgamento das contas do fundo para alguns anos de funcionamento. No entanto, o conteúdo dos acórdãos não apresenta a prestação de contas completa e o TCE não permite acesso ao relatório na íntegra[7].
Além desses problemas em comum, observamos a falta de mecanismos de participação da sociedade civil em três fundos. A participação de diferentes setores da sociedade nesse tipo de conselho é fundamental para equilibrar as prioridades e escolhas dos apoios oferecidos. A exceção neste caso é o MT Floresta, que possui um conselho de representantes da sociedade civil para escolha dos projetos. Mesmo assim, não há informação disponível sobre o andamento desses projetos ou mesmo sobre a quantidade de recursos arrecadados e distribuídos pelo fundo anualmente.
Também destacamos alguns aspectos específicos de falhas na governança de cada fundo. Por exemplo, o Femam/MT e o Fema/PA apresentam problemas graves de coerência entre as regras e as práticas de funcionamento. No caso do Fema/PA, o Decreto Estadual nº 1.523/1996 prevê que seus recursos financeiros serão administrados por um Conselho Diretor e por uma Secretaria Executiva a ele vinculada. Porém, verificamos que não há pessoas designadas como membros para exercerem estas funções[8]. Da mesma forma, no caso do Femam/MT, a Lei Complementar Estadual do Mato Grosso nº 232/2005 indica que deve haver uma única coordenadoria específica para sua administração, mas na prática ele é gerenciado por diferentes coordenadorias da Sema/MT[9]. Ademais, apesar de a lei indicar várias áreas para aplicação dos recursos, incluindo apoio a projetos externos às secretarias de meio ambiente, na prática, o Femam e o Fema têm sido usados apenas para apoiar projetos das respectivas Semas do Mato Grosso e do Pará.
Dos fundos avaliados, o Fundeflor/PA é o único em fase de implementação e que ainda não iniciou suas atividades de distribuição de recursos. Sua principal fonte de recursos serão concessões florestais estaduais, que deverão iniciar somente em 2012[10]. Mesmo assim observamos que ainda não há regras claras para acesso aos recursos do fundo, o que precisa ser definido pelo Instituto de Desenvolvimento Florestal do Estado do Pará (Ideflor) ao longo deste ano de 2011.
Nossa análise revela que os quatro fundos estaduais avaliados necessitam de grandes melhorias na gestão administrativa e financeira para alcançarem seus objetivos. Esses resultados podem orientar a criação de novos fundos estaduais direcionados à captação e administração de recursos para REDD+, além de nortear reformas nos fundos avaliados. A seguir, listamos as principais recomendações para os fundos existentes e a serem criados:
Disponibilizar ao público regras para acesso de recursos. As regras para distribuição de recursos advindos dos fundos devem estar disponíveis ao público, incluindo os requisitos para apresentação de projetos e critérios de avaliação. Além disso, as justificativas de aprovação e reprovação de propostas devem ser encaminhadas aos proponentes e disponibilizadas ao público. Recomendamos também a elaboração de cartilhas para que essas informações estejam acessíveis em linguagem mais simples a grupos de baixa escolaridade.
Adotar mecanismos de participação da sociedade no funcionamento do fundo. Os administradores dos fundos devem criar comitês ou conselhos para definição de prioridades de aplicação anual dos recursos, revisão de objetivos e até mesmo avaliação de projetos apoiados pelos fundos. Os conselheiros devem ser profissionais com conhecimento nas áreas de atuação dos fundos e com representatividade em diferentes setores (produtivo, empresarial, acadêmico, populações tradicionais, povos indígenas e organizações não governamentais). Essa prática garantirá maior transparência de gestão e contribuirá para que os fundos mantenham atuação direcionada a seus objetivos.
Monitorar impactos e eficácia da aplicação dos recursos dos fundos florestais. O monitoramento de impacto do apoio dos fundos é indispensável para avaliar o cumprimento de seus objetivos, que estão relacionados ao incentivo de práticas sustentáveis ou auxílio a ações de comando e controle. Por isso, os projetos apoiados devem ser acompanhados ao longo de sua execução por meio de avaliação técnica (da equipe do fundo ou independente) e ao final devem ser avaliados quanto à sua contribuição aos objetivos dos fundos.
Divulgar prestação de contas anualmente. A transparência dos relatórios anuais com informações financeiras completas aumenta a credibilidade do fundo e contribui para atrair mais recursos financeiros. Por isso, os gestores dos fundos precisam divulgar anualmente relatórios completos em formato compreensível ao público, além de divulgar os resultados das avaliações dos órgãos de controle ou auditorias independentes.
Proporcionar apoio técnico-administrativo para grupos com dificuldade de elaborar propostas. Para facilitar acesso ao fundo por grupos que dependem da floresta, mas que nem sempre possuem treinamento para elaboração de propostas (por exemplo, populações tradicionais e povos indígenas), os fundos devem oferecer capacitações para elaboração e administração de projetos (por exemplo, treinamento para estruturar projetos e realizar prestação de contas).
* Analista de política pública do Instituto Centro de Vida (ICV).
** Autora correspondente: brendabrito@imazon.org.br.
1 Nabuurs, G.J. et al. 2007. Forestry. In: Metz, B., et al. (Org). Climate Change 2007: Mitigation. Contribution of Working Group III to the Fourth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press.
2 O Fundo Amazônia foi criado pelo Decreto nº 6.527/2008 e tem como objetivos captar doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, e de promoção da conservação e do uso sustentável das florestas no bioma Amazônia. O Fundo Clima foi criado pela Lei nº 12.114/2009, regulamentado pelo Decreto nº 7.343/2010, e objetiva assegurar recursos para apoio a projetos ou estudos e financiamento de empreendimentos que visem à mitigação da mudança do clima e à adaptação à mudança do clima e aos seus efeitos.
3 O Fundo Estadual de Florestas foi criado pela Lei nº 1.117/1994 e o Fundo Especial de Meio Ambiente foi criado pela Lei nº 1.426/2001.
4 Em Mato Grosso, a minuta de ante-projeto da Política Estadual de Mudanças Climáticas prevê a criação de um Fundo Estadual de Mudanças Climáticas para administrar recursos de REDD+. O Pará tem discutido a criação de um Fundo Estadual de Mudanças Climáticas e Pagamentos por Serviços Ambientais dentro da minuta de ante-projeto da Lei Estadual de Mudanças Climáticas. Mais recentemente, o Amazonas propõe estabelecer fundos de fomento para incentivar a adoção de práticas de conservação e melhoria dos serviços ambientais, de acordo com a minuta de projeto de lei que institui a Política sobre Serviços Ambientais e o Sistema de Gestão dos Serviços Ambientais.
5 Segundo as taxas de desmatamento anual registradas pelo Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite (Prodes), o Mato Grosso liderou o ranking do desmatamento nos Estados da Amazônia até 2006, seguido pelo Estado do Pará. A partir de então o Pará assumiu a primeira posição, seguido pelo Estado de Mato Grosso. Dados disponíveis em: <http://www.obt.inpe.br/prodes/prodes_1988_2010.htm> Acesso em: 7 Abr. 2011.
6 Utilizamos indicadores de governança apresentados na metodologia proposta pela Iniciativa para Governança das Florestas, um projeto implementado pelo The World Resources Institute, Imazon e ICV. Mais informações em: <http://www.wri.org/project/governance-of-forests-initiative>. Acesso em: 3 mar. 2011.
7 O Imazon ingressou com ofício perante a 3ª Controladoria do TCE, em 9 de novembro de 2010, solicitando acesso aos relatórios de prestação de contas, incluindo balanços orçamentários, financeiros e patrimoniais desde a criação do Fema. Porém, em 23 de fevereiro de 2011, o TCE negou o pedido e informou que apenas partes legítimas no processo de pres-tação de contas, seus sucessores ou procuradores legalmente habilitados poderiam acessar essas informações (Ofício nº. 2011/00958- TCE-CG/GP).
8 Informação coletada em entrevistas com Getúlio Bicudo – Diretor Administrativo e Financeiro da Sema/PA (DGAF – Dire-toria de Gestão Administrativa e Financeira); Leopércio Fôro – Coordenador Financeiro (DGAF); Henrique Silva – Técnico da Coordenadoria de Gestão Compartilhada e Regionalizada da Diretoria de Planejamento (Diplan) da Sema/PA e membro da equipe que analisava os projetos para o Fema da então Sectam; e Nelita Paes – Coordenadora do escritório de projetos da Sema/PA.
9 As atividades de gestão do Femam/MT, hoje, são realizadas pela coordenadoria contábil, coordenadoria de planejamento e coordenadoria financeira. Além disso, existe um departamento específico de captação de recursos.
10 O Diretor do fundo em 2010 (Emanuel Chaves) informou que o Fundeflor deve começar a funcionar com recursos próprios a partir de 2012. Serão aprovados projetos de duração de um ano, entre R$ 50.000,00 e R$ 100.000,00 até o limite dos recursos do fundo.
As autoras agradecem aos funcionários da Sema/MT, Seder/MT, Sema/PA, Ideflor, MPE e TCE/PA pela disponibilidade para entrevistas e compartilhamento de informações. Agradecem também os comentários ao texto por Adalberto Veríssimo, André Monteiro, Paulo Barreto, Laurent Micol (ICV) e Raimundo Moraes (MPE/PA). Este estudo é parte do Projeto Iniciativa para Governança das Florestas, coordenado pelo World Resources Institute em parceria com o Imazon e ICV, e recebeu apoio financeiro da Agência Norueguesa para Cooperação do Desenvolvimento (Norad).
This post was published on 1 de fevereiro de 2013
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