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Pendências fundiárias no Pará

Pendências fundiárias no Pará

 

Brenda Brito*, Sara Baima, Jamilye Salles

No Estado do Pará, a situação fundiária é confusa e associada a conflitos no campo. Apesar de avanços nos últimos anos com a criação de Áreas Protegidas e o cancelamento de títulos falsos de terra, parte do território ainda permanece sem definição. Neste O Estado da Amazônia avaliamos a situação fundiária estadual com dados de diferentes instituições fundiárias e ambientais. Concluímos que 39% do território estadual apresentam pendências de regularização fundiária, concentrando também a maior parte (71%) do desmatamento no Estado. A maioria da área (92%) sem regularização não possui processos em curso para definição fundiária. Estes dados reforçam a necessidade de priorizar e acelerar a regularização de terras, o que pode ser feito com informações existentes no Cadastro Ambiental Rural.

 

Introdução

 

A situação fundiária do Estado do Pará é confusa e associada a conflitos no campo. Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou o cancelamento de mais de 5 mil títulos de terras falsos registrados em cartórios1. Entretanto, a situação pode ser ainda pior. A Comissão Estadual de Combate à Grilagem de Terras, composta por 12 instituições do poder público e sociedade civil no Pará2, indica que há pelo menos mais 4 mil títulos falsos registrados em cartórios, totalizando 9 mil títulos3. A indefinição fundiária também contribui para que o Estado seja o campeão de conflitos de terra na Amazônia nos últimos 15 anos, alcançando 1.303 ocorrências entre 1997 e 20114.

Levantamentos recentes demonstraram que 55% do território do Pará são Áreas Protegidas, incluindo Terras Indígenas e Unidades de Conservação5. Além disso, o Estado possui destaque no maior programa de regularização fundiária de ocupações privadas, o Terra Legal, iniciado em 2009. Mesmo assim, os resultados desse programa ainda estão aquém do esperado. Por exemplo, até janeiro de 2012, dos 45 mil imóveis cadastrados para regularização, apenas 406 títulos foram emitidos no Pará, abrangendo 861 quilômetros quadrados6. Diante dessa situação, o Pará necessita avançar na solução de seu passivo de regularização fundiária.

Neste O Estado da Amazônia mapeamos a situação fundiária do Estado do Pará em agosto de 2012 para identificar as principais áreas com pendência de regularização e a situação da cobertura florestal nessas localidades. Este é um levantamento preliminar, que visa estimular o debate público sobre ordenamento territorial no Estado e também aumentar a transparência de informações disponíveis sobre o tema.

 

Métodos

 

Coletamos e analisamos os limites geográficos7 das áreas com regularização fundiária e em processo de regularização em órgãos fundiários e ambientais8 no Pará até agosto de 2012. Não consideramos as Áreas de Proteção Ambiental (APA) na análise, pois este tipo de Unidade de Conservação não define a titularidade fundiária da área, apenas determina limitações no uso dos recursos naturais. Utilizamos também os limites geográficos dos imóveis registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR), administrado pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará (Sema). O CAR não garante a titularidade fundiária desses imóveis, mas é um indicador de ocupação privada do território.

Este levantamento possui três restrições principais. Primeiro, os limites geográficos estão em diferentes escalas, o que não permite utilizar os mapas para uma identificação precisa dos imóveis. No entanto, os dados indicam as regiões de localização desses imóveis, o que pode orientar o desenho de políticas públicas para definição fundiária. Segundo, nem sempre obtivemos todos os dados disponíveis nos órgãos consultados. Por isso, os mapas apresentados neste estudo devem ser considerados versões preliminares, e poderão ser aprimorados à medida que mais informações sejam disponibilizadas.

A terceira restrição refere-se ao estado preliminar dos dados coletados no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e na Fundação Nacional do Índio (Funai) para casos de pendências de regularização. Algumas dessas informações não foram produzidas por esses órgãos, mas por estudos externos (por exemplo, de pesquisadores em universidades) para embasar os pedidos de reconhecimento de territórios9. Por isso, devem ser consideradas como dados preliminares, que podem ser modificados à medida que a análise desses órgãos avance em cada caso. Os tipos de dados obtidos e respectivas fontes são apresentados na Tabela 1.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Categorias Fundiárias Desconhecidas

 

Nossa compilação revelou que 61% do território do Pará (ou 762.136 quilômetros quadrados em 4.827 imóveis) estão sob alguma categoria fundiária já definida, desconsiderando as sobreposições existentes entre os imóveis (Tabela 2 e Figura 1). A maior parte está concentrada nas áreas noroeste e sul do Estado, em categorias como Terras Indígenas, Unidades de Conservação (exceto Áreas de Proteção Ambiental) e Projetos de Assentamento de reforma agrária. A menor parte refere-se a imóveis privados com titulações recentes (Programa Terra Legal e Iterpa) e com titulações mais antigas, representados nas categorias imóveis certificados e lotes titulados, de acordo com o acervo do Incra (Tabela 2 e Figura 1).

Portanto, o Pará ainda precisa definir a titularidade fundiária de 39% (ou 485.553 quilômetros quadrados) de seu território, concentrados principalmente no leste do Estado. Parte desta área possui processos em andamento para regularização, como será abordado a seguir.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Pendências Fundiárias

 

Dos 485.553 quilômetros quadrados sem titularidade fundiária definida no Pará, a maioria (92%) não possui demanda de reconhecimento em tramitação em órgãos fundiários. Isso equivale a 36% do Estado, descontando-se as sobreposições. Encontramos apenas 37.119 quilômetros quadrados em 17.312 imóveis com esse tipo de processo em andamento (Tabela 3).

Identificamos também 23 pontos de localização de comunidades quilombolas mapeadas e 26 pontos de Terras Indígenas em estudo pela Funai (Figura 2), cujas áreas totais dos imóveis ainda não estão definidas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dados do CAR

Apesar de não representar juridicamente um cadastro para fins fundiários, o CAR indica áreas com ocupações privadas, cujos ocupantes aceitaram se cadastrar. Por isso, confrontamos os dados do CAR na área onde não havia informação sobre imóveis reconhecidos ou em processo de reconhecimento indicados nas seções anteriores15.

Encontramos 195.094 quilômetros quadrados já ocupados por imóveis no CAR, o que equivale a 44% da área sem informação. Esses imóveis abrangem principalmente as regiões nordeste e sudeste do Estado. Dessa forma, somando os dados do CAR a todas as áreas mapeadas nas seções anteriores e eliminando as sobreposições existentes, restariam 20% do território paraense (ou 253.341 quilômetros quadrados) sem informações oficiais disponibilizadas de ocupações (Figura 3).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Desmatamento e Situação Fundiária

 

Finalmente, estimamos que 71% da área desmatada no Pará até 2011 (175.535 quilômetros quadrados) estavam na categoria sem definição fundiária (Figura 4 e Figura 5). Desse total, a maior parte está nas áreas que possuem CAR, mas sem informação fundiária, totalizando 109.067 quilômetros quadrados (63% da área total desmatada no Estado) (Figura 5). Esse dado reforça a necessidade de avançar com a definição dos direitos a terra no Estado, pois os investimentos de longo prazo para recuperação de áreas degradadas e para intensificação de produção agropecuária em áreas já abertas dependerão da garantia de direitos a terra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Recomendações para Políticas Públicas

 

Esta análise preliminar sobre ocupação do território paraense demonstra que será importante avançar com a definição fundiária em 39% do Estado, principalmente considerando ações de recuperação de áreas degradadas e intensificação do uso da terra para agropecuária. Esse tema deve ser prioridade de governo, pois sua resolução levará à diminuição de conflitos fundiários, a investimentos econômicos mais sustentáveis no longo prazo, além de auxiliar nos esforços de regularização ambiental de imóveis. Como recomendações mais específicas, destacamos:

Criar grupo de trabalho intergovernamental para regularização fundiária. Como diferentes órgãos de jurisdição estadual e federal possuem processos em curso de reconhecimento fundiário de imóveis no Estado, é importante coordenar essas ações para otimizar recursos e evitar sobreposição de demandas. Para isso, recomendamos a criação de um Grupo de Trabalho Intergovernamental para Regularização Fundiária no Pará, coordenado pelo governo do Estado, com participação do governo federal, de representantes de municípios e da sociedade civil. Esse grupo poderá definir áreas prioritárias e planejar atuação conjunta para ações de georreferenciamento de imóveis e efetiva regularização das pendências.

Usar o CAR como ferramenta para acelerar regularização. O CAR é uma poderosa fonte de informação georreferenciada de imóveis rurais no Pará. Dessa forma, recomendamos que os órgãos fundiários utilizem este cadastro como base para iniciar e simplificar os processos de regularização fundiária. Isso evitará nova solicitação de informações já apresentadas para emissão do CAR e também auxiliará no planejamento das ações de regularização. Por exemplo, municípios com maior área coberta pelo CAR podem ser considerados prioritários para regularização de terras. Além disso, os dados do cadastro podem ser confrontados com informações sobre outras demandas prioritárias de regularização (por exemplo, áreas habitadas por comunidades tradicionais), evitando que imóveis sobrepostos a essas demandas sejam titulados. Esse processo demandará negociações para coordenar as regras de georreferenciamento aplicadas no CAR e nos órgãos fundiários, além de modificações das regras atuais para solicitação e emissão de títulos de terra.

Disponibilizar dados publicamente. Os limites geográficos e outras informações sobre os imóveis regularizados e em processo de regularização devem estar disponíveis ao público, aumentando a transparência sobre a ocupação do território no Estado. Uma iniciativa promissora nesse sentido foi lançada pelo Programa Terra Legal, por meio da publicação de seu acervo fundiário17,18. Nele, é possível visualizar as posses georreferenciadas pelo programa e os títulos emitidos, mesmo que este banco de dados ainda esteja incompleto (por exemplo, até agosto de 2012 não possuía todos os polígonos dos títulos emitidos). No entanto, esse acervo ainda não possui dados fundiários de jurisdição estadual, incluindo o Pará. Por isso, é necessário que os Estados celebrem acordos de cooperação para troca de informações fundiárias. Além disso, esses órgãos devem adaptar seus sítios eletrônicos de acordo com a Lei de Acesso à Informação (12.527/2011) para disponibilizar os dados ao público.

 

Referências e Notas

 

* Autora correspondente: brendabrito@imazon.org.br

1 Brito, Brenda e Barreto, Paulo. 2011. A regularização fundiária avançou na Amazônia? Os dois anos do Programa Terra Legal. Belém-PA: Imazon.

2 Os membros da Comissão Estadual de Combate à Grilagem de Terras são: Tribunal de Justiça do Estado (TJE), Procuradoria Geral do Estado (PGE), Instituto de Terras do Pará (Iterpa), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público Estadual (MPE), Advocacia Geral da União (AGU), Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Pará (OAB), Federação dos Trabalhadores da Agricultura (Fetagri), Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH), Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa).

3 Comissão Permanente de Monitoramento, Estudos e Assessoramento das Questões ligadas à Grilagem. Análise dos registros de imóveis rurais bloqueados no Pará. s/d. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/publicacoes/reforma-agraria/politica-de-desapropriacao/mapa_grilagem_para.pdf. Acesso em: 11 mai. 2012.

4 Dados de relatórios da Comissão Pastoral da Terra publicados anualmente e disponíveis em: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/conflitos-no-campo-brasil.

5 Veríssimo, Adalberto et al. 2011. (Org) Áreas Protegidas na Amazônia Brasileira: avanços e desafios. Belém-PA: Imazon, São Paulo-SP: ISA. Este levantamento não considerou dados referentes às terras quilombolas e UCs desafetadas pela Lei 12.678/2012.

6 Terra Legal. Extrato Siterleg Titulação por UF 2012. Brasília: MDA, 2012.

7 Os dados geográficos foram analisados utilizando sistema de Projeção Sinusoidal e Datum South America (SAD) 1969.

8 Os órgãos consultados foram o Incra, Iterpa, Funai, ICMBio, Sema e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA-Programa Terra Legal).

9 Não tivemos acesso às autorias dos dados, mas o ICMBio e a Funai destacaram que os dados repassados ainda serão avaliados nos processos de reconhecimento territorial.

10 A Lei de Gestão de Florestas Públicas (11.284/2006) permitiu que alguns planos de manejo florestal aprovados na época de sua publicação pudessem continuar temporariamente, mediante cumprimento de alguns critérios. Para esses casos o Serviço Florestal Brasileiro firmou contratos de transição de exploração madeireira.

11 Imóveis certificados são de titulação privada e que passaram pelo processo de certificação do georrefenciamento feito pelo Incra. A certificação consiste na verificação de que o imóvel não esteja sobreposto a nenhum outro e que seu memorial descritivo atende às exigências técnicas (Art. 9º, §1º do Decreto 4.449/2002).

12 Referente a títulos georeferenciados emitidos pelo Incra no passado. A data exata da titulação não estava declarada nos dados obtidos.

13 Referente apenas a títulos emitidos em 2011. Não tivemos acesso a titulações anteriores realizadas pelo Iterpa

14 Consideramos neste cálculo apenas os títulos emitidos pelo Programa Terra Legal cujos limites geográficos foram disponibilizados. No entanto, até janeiro de 2012, o programa já havia emitido 406 títulos no Pará.

15 Não consideramos dados do CAR em sobreposição aos outros dados levantados, pois o objetivo deste estudo não é identificar conflitos de posse, mas sim mapear a área total onde já existe algum tipo de informação fundiária.

16 Inpe. s/d. Taxas anuais do desmatamento – 1988 até 2011. Disponível em: http://www.obt.inpe.br/prodes/sisprodes2000_2011.htm. Acesso em: 05 out. 2012.

17 O Acervo fundiário do Terra Legal está disponível em: http://i3geo.mda.gov.br/i3geo/interface/openlayers.htm?libhitou3ml53fbe5quan29444. Acesso em: 11 mai. 2012.

18 O portal i3geo faz parte da Infraestrutura Nacional de Dados Espaciais (Inde), criada pelo Decreto 6.666/2008, com o objetivo de integrar diferentes bases de dados de órgãos públicos. Mais informações estão disponíveis em: http://www.inde.gov.br.

As autoras agradecem os comentários de Adalberto Veríssimo, Amintas Brandão Jr., André Monteiro, Paulo Barreto, Márcio Hirata e equipe do Terra Legal e do Incra em Brasília, além do auxílio de Dário Cardoso Jr. na coleta de dados. Agradecemos também o apoio financeiro da Fundação Ford – Escritório Brasil e do Fundo Amazônia para a realização deste estudo.

 

 

This post was published on 6 de agosto de 2013

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