Resumo Executivo
Na região amazônica há terra suficiente para suprir as demandas da sociedade por desenvolvimento econômico, conservação de recursos naturais e reforma agrária. Contudo, o Brasil não tem sido capaz de criar uma política de administração fundiária que permita atingir esses objetivos. Em decorrência disso predominam na região o desperdício e destruição de recursos naturais, a apropriação privada de terras públicas e os conflitos sociais. O ordenamento fundiário será fundamental para estimular investimentos mais sustentáveis e reduzir conflitos no campo. Neste trabalho avaliamos a mais ambiciosa iniciativa do governo federal para realizar este ordenamento em imóveis privados: o Programa Terra Legal.
Este programa surgiu após a constatação do caos fundiário e de várias demandas para regularização das posses. Em 2008, havia indefinição fundiária de 53% da Amazônia, incluindo terras privadas sob suspeita de ilegalidade; área legalmente considerada sem alocação e posses sem reconhecimento legal. Além disso, não havia documentação consistente da locação física de imóveis rurais inseridos no cadastro de terras do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e registrados nos cartórios da Amazônia.
Nesse contexto, o governo publicou a Medida Provisória 458/2009, que após um polêmico processo foi convertida na Lei 11.952/2009. A aplicação dessa lei é feita pelo programa Terra Legal, cujo principal objetivo é regularizar imóveis privados de até 15 módulos fiscais de forma mais célere. Para isso, o programa prevê as seguintes fases: cadastramento de posses, georreferenciamento, vistoria (em alguns casos previstos em lei), emissão de títulos e monitoramento pós-titulação. Esse relatório analisa as quatro fases iniciais do programa em seu primeiro ano de atuação.
O Terra Legal não conseguiu alcançar a ambiciosa meta de emitir títulos num prazo de 60 dias. Houve avanços na fase de cadastramento de posses, mas muitos desafios ainda persistem nas etapas de georreferenciamento, vistoria de imóveis e titulação. No total, o programa cadastrou 74.132 posses em 8.369.872,937 hectares em 12 meses, sendo a maioria dos cadastros válidos localizados no Pará, com 49% dos imóveis (35.815 posses) e 48% (4 milhões de hectares) da área cadastrada.
A maior parte de área cadastrada (39%) estava concentrada nos imóveis acima de 4 e menores que 15 módulos fiscais, apesar de representarem apenas 8% do número de imóveis cadastrados. De acordo com a Lei 11.952/2009, os ocupantes desses imóveis devem pagar pela regularização da terra. Por outro lado, considerando o número de posses cadastradas, a maior parte (63%) concentrou-se na categoria de até 1 módulo fiscal (até 76 hectares), que serão objeto de doação pela Lei 11.952/2009. Essas posses correspondiam a 16% da área total cadastrada.
Na fase de georrefenciamento, a atuação no primeiro ano do programa concentrou-se na contratação de empresas terceirizadas para realizar o serviço. Além disso, o governo revisou normas e adaptou procedimentos para acelerar a verificação do resultado do trabalho das empresas.
Não houve avanços em campo na fase de vistoria, mas essa foi uma das etapas mais discutidas no programa. A previsão legal de que não ocorrerá vistoria antes de emitir títulos em alguns imóveis pode gerar titulações sobrepostas a territórios não reconhecidos de grupos com prioridade legal para regularização fundiária (populações tradicionais e povos indígenas). Apesar das medidas preventivas adotadas pelo programa, ainda não houve avanços significativos na identificação prévia dessas demandas prioritárias para evitar sobreposição de títulos privados.
Em 12 meses, o programa emitiu apenas 216 títulos, decorrentes de processos de regularização anteriores ao Terra Legal. Porém, o valor dos imóveis acima de 1 módulo fiscal ainda é objeto de discussão e pode ser revisado no segundo ano do programa.
De acordo com nossa análise, os principais aspectos pendentes no primeiro ano do Terra Legal são:
– Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 11.952/2009, que questiona aspectos que afetam diretamente a atuação do programa, como dispensa de vistoria prévia à titulação em alguns casos;
– Necessidade de assegurar a manifestação de todos os órgãos interessados nas áreas de atuação do programa;
– Ausência de identificação de demandas de regularização de terras de povos indígenas e comunidades tradicionais;
– Falta de previsão de vistoria para imóveis cadastrados feitos com a importação de dados de outros sistemas;
– Necessidade de divulgação das posses georreferenciadas antes da titulação, para que atores locais possam confirmar informações e indicar inconsistências;
– Reformulação e divulgação dos valores dos imóveis.
Introdução
Na região amazônica há terra suficiente para suprir as demandas da sociedade por desenvolvimento econômico, conservação de recursos naturais e reforma agrária. Contudo, o Brasil não tem sido capaz de criar uma política de administração fundiária que permita atingir esses objetivos. Em decorrência disso predominam na região o desperdício e destruição de recursos naturais, a apropriação privada de terras públicas e os conflitos sociais. Estes problemas podem se agravar à medida que o governo e o setor privado investem em atividades que tornam a região mais acessível e atrativa para imigrantes como as hidrelétricas, a mineração e o agronegócio. O ordenamento fundiário será fundamental para estimular investimentos mais sustentáveis e reduzir conflitos no campo. Neste trabalho avaliamos a mais ambiciosa iniciativa do governo federal para realizar este ordenamento em imóveis privados: o Programa Terra Legal.
Este programa surgiu após a constatação do caos fundiário e de várias demandas para regularização das posses. Em 2008, mais da metade dos títulos registrados como terra privada na Amazônia Legal estavam sob suspeita de ilegalidade. Aproximadamente 24% da terra (120,4 milhões de hectares) foi legalmente considerada sem alocação, embora virtualmente toda essa área fosse contestada por vários agentes públicos e privados (Barreto et al., 2008). Além disso, não havia documentação consistente da locação física de imóveis rurais inseridos no cadastro de terras do Incra e registrados nos cartórios da Amazônia.
Foi nesse contexto que o governo federal publicou a Medida Provisória (MP) 458/2010, que posteriormente foi convertida na Lei 11.952/2009. Esse marco legal permite a regularização fundiária de ocupações incidentes em terras da União na Amazônia Legal de até 15 módulos fiscais, com limite de 1,5 mil hectares. Para implementar essa lei, o governo federal criou o Programa Terra Legal, em junho de 2009.
No entanto, a discussão sobre a MP 458/2009 foi marcada por várias críticas e oposição, o que lhe conferiu a denominação de MP da Grilagem, em referência à prática de apropriação indevida de terras públicas na Amazônia. A MP estabeleceu várias facilidades para a regularização das posses ilegais, como descontos no preço da terra e longo prazo para pagamento. Por isso, críticos apontaram que a MP poderia estimular a continuação da apropriação ilegal de terras públicas (Brito & Barreto, 2009a).
A Lei 11.952/2009 manteve várias das facilidades estabelecidas na MP 458/2009 e, portanto, os riscos continuam. Desta forma, é essencial avaliar a implementação da lei e seus impactos para tentar prevenir e corrigir os seus potencias efeitos negativos. Além disso, já que a lei trata da privatização do patrimônio público, é essencial que esse processo ocorra com ampla transparência de informações, para que diferentes setores da sociedade possam se manifestar a respeito.
Assim, neste relatório, analisamos o primeiro ano do Programa Terra Legal, com foco em suas quatro fases iniciais: cadastramento, georreferenciamento, vistoria (quando previsto em lei) e emissão do título. Além delas, o programa ainda conta com a fase de monitoramento pós-titulação. Para as análises desse relatório, utilizamos dados disponíveis no sítio eletrônico do Programa Terra Legal[1], no portal criado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para compartilhar informações com membros de um grupo de acompanhamento do programa; e dados de entrevistas realizadas entre novembro de 2009 e fevereiro de 2010, com integrantes do governo federal ligados ao Terra Legal, de movimentos sociais e de sindicatos de trabalhadores rurais. Primeiro, explicamos os principais aspectos da base legal que apoia o Terra Legal (Lei 11.952/2009 e suas regulamentações). Em seguida, descrevemos a estrutura do programa e analisamos os principais aspectos identificados nas quatro fases iniciais já mencionadas. Finalmente, destacamos os desafios e recomendações para o segundo ano de atuação do Terra Legal.
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1 http://portal.mda.gov.br/terralegal/
2. Mudanças na Legislação Fundiária na Amazônia
A principal inovação legislativa fundiária em 2009 foi a Lei 11.952/2009, que resultou da conversão da MP 458/2009, publicada em 10 de fevereiro do mesmo ano. Essa lei trata de normas para regularização fundiária rural e urbana em territórios da União na Amazônia Legal, considerando imóveis de até 15 módulos fiscais, com limite de 1,5 mil hectares, e sem necessidade de licitação. O tamanho do módulo fiscal varia em cada Estado, com média de 76 hectares nos 436 municípios da Amazônia Legal onde há glebas públicas federais (Anexo 1).
Antes da Lei 11.952/2009 o governo já havia promovido mudanças pontuais para flexibilizar e facilitar o processo de regularização de terras, considerando o grande acúmulo de pedidos de titulação nos escritórios do Incra desde a década de 1980. Esse acúmulo ocorreu principalmente por dois motivos: mudança de prioridade na atuação do Incra e ausência de marco legal para regularizar posses acima de 100 hectares.
A partir de 1985, com o Primeiro Plano de Reforma Agrária, o Incra passou a priorizar criação de assentamentos rurais em vez de titulação de posses individuais. Desde então, o Incra não relatou nenhum processo de licitação de terra na Amazônia e emitiu um número muito limitado de títulos. Como resultado, pedidos de regularização fundiária acumulam-se nos escritórios regionais na Amazônia.
Por outro lado, mesmo com essa mudança de prioridade e a falta de uma lei que especificasse a forma de regularização de terras entre 100 e 2,5 mil hectares, órgãos públicos federais continuaram sinalizando que essas posses seriam, de alguma forma, reivindicações legítimas. Atendendo às solicitações dos posseiros, o Incra emitiu muitas Declarações de Posse reconhecendo que o posseiro estava ocupando a terra pública pacificamente e que tal área estava sujeita a um processo de titulação pelo Incra. Posseiros utilizavam esse documento para vários propósitos, entre eles, aprovar, até 2003, planos de manejo para extração de madeira no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Além disso, muitos posseiros também pagavam Imposto Territorial Rural (ITR) sobre suas posses e realizavam o cadastramento de seus imóveis no Sistema Nacional de Cadastro Rural do Incra (SNCR) para obtenção do Certificado de Cadastro Rural de Imóveis (CCIR). Esse certificado é um documento essencial para a realização de transações com imóveis rurais e muitas vezes era utilizado como prova da ocupação em terra pública, sendo aceito inclusive para obtenção de empréstimos bancários, mesmo que não estivessem atrelados a uma propriedade legalmente constituída. O pagamento do ITR e o cadastramento da posse no Incra foram mais do que compensados pelo fato de o governo não haver cobrado qualquer pagamento pela madeira extraída nessas terras ou pelo seu uso agrícola.
Um forte movimento social a favor da regularização de posses maiores que 100 hectares começou a crescer no início da década de 2000, induzido por demandas por licenciamento ambiental de exploração de madeira e desmatamento nas posses. O movimento começou com os posseiros associados à extração de madeira e, mais tarde, incluiu a participação de fazendeiros. Em novembro de 1999, o Ministério Público Federal (MPF) no Pará solicitou ao Incra e Ibama a assinatura de um termo de ajuste de conduta referente ao procedimento para inspecionar a localização das posses. O Ibama foi obrigado a solicitar ao Incra a confirmação da localização de todas as posses antes de renovar ou aprovar novos planos de manejo florestal. Porém, esse processo de comunicação entre os órgãos poderia levar mais de um ano para ser concluído e, por isso, os madeireiros aumentaram a pressão por regularização fundiária. Posseiros de áreas maiores do que 100 hectares aumentaram a pressão para a regularização em 2002 depois que o Ibama reduziu para 13 os tipos de documento de terra aceitos para a autorização de exploração de madeira e posteriormente para três tipos em 2006[2].
O movimento pela regularização fundiária ganhou mais força depois da tentativa do governo federal de arrecadar as terras em posses por meio do recadastramento de imóveis rurais em 2004. Como resultado, os primeiros sinais de flexibilização das regras para regularização de terras surgiram em 2005 com o aumento do limite de área para regularização sem necessidade de licitação. Inicialmente, a Lei 8.666/1993, que trata de regras de licitação, excluía a exigência de licitação apenas para imóveis de até 100 hectares. Em 2005, esse limite foi alterado para 500 hectares pela Lei 11.196/2005, que não tratava de assuntos fundiários. Por isso, essa mudança passou despercebida do debate público. Em 2008, o limite foi novamente alterado pela Lei 11.763/2008, passando para 15 módulos fiscais, não excedendo 1,5 mil hectares. Ou seja, em um espaço de três anos, os limites de área de regularização fundiária em terras públicas sem licitação praticamente quadruplicou.
Após essa alteração, o Incra publicou as Instruções Normativas (IN) 45 e 46, em maio de 2008, para adaptar os procedimentos de regularização fundiária (Brito & Barreto, 2009a). Em seguida, a MP 458/2009 surgiu na tentativa de consolidar um processo mais rápido para emissão de títulos de terra na Amazônia. Essa MP foi convertida na Lei 11.952/2009, sob críticas de vários setores da sociedade civil (Quadro 1). As principais inovações dessa lei são explicadas a seguir.
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2 A Instrução Normativa do Ibama nº 04/2002, Anexo II, lista 13 tipos de documentos aceitos como prova de justa posse para obtenção de plano de manejo florestal. A Instrução Normativa nº 04/2006, Anexo II, lista três tipos de documento.
Nova legislação fundiária
Em geral, os requisitos básicos que existiam em legislações anteriores de regularização de terras foram mantidos pela Lei 11.952/2009, como a exigência de exercer cultura efetiva no imóvel, ter ocupação mansa e pacífica, realizar o georreferenciamento do imóvel (de acordo com a Lei 10.267/2001 e Decreto 4.449/2002) e de não ser proprietário de outro imóvel rural (Quadro 2). Porém, a Lei 11.952/2009 trouxe inovações relativas ao pagamento da terra. Nesse sentido, terras de até 1 módulo fiscal serão doadas; imóveis entre 1 e 4 módulos fiscais serão vendidos com valores diferenciados e abaixo do valor de mercado; e áreas entre 4 e 15 módulos fiscais serão vendidas por valores determinados nas tabelas de referência do Incra, sobre as quais incidirão índices relativos à localização e condição de acesso, tempo de ocupação e tamanho da área (Quadro 2).
A lei também restringe os tipos de pessoas que podem se beneficiar da regularização fundiária. Ficam excluídas as pessoas jurídicas, proprietários de imóveis, estrangeiros, quem exerce cargo ou emprego público no Incra, no MDA, na Secretaria de Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), ou nos órgãos estaduais de terras. Porém, a lei não trata de titulação para diferentes membros de uma mesma família. É frequente encontrar solicitações de regularização de vários imóveis vizinhos, todos pertencentes a familiares (por exemplo, pais e filhos, tios e sobrinhos). A falta de impedimentos ou limitações a regularizações nesses casos é uma fragilidade da nova lei, pois pode permitir que grandes imóveis sejam fracionados entre familiares para atender às regras de regularização. Por exemplo, um imóvel de 2,5 mil hectares poderia ser dividido em cinco imóveis de 500 hectares.
Outro aspecto importante e polêmico da lei é a isenção de vistoria obrigatória para imóveis abaixo de 4 módulos fiscais, como forma de acelerar o processo de titulação. Essa medida foi amplamente criticada antes da aprovação da lei, pois fragiliza a verificação da real existência de ocupações e principalmente porque dificulta a identificação de demandas de reconhecimento de territórios de povos e comunidades tradicionais nas áreas que serão tituladas. Por exemplo, sem fazer a vistoria, o MDA poderia emitir um título privado sobreposto a um território de uso coletivo que ainda não tenha sido formalmente reconhecido. Essa falta de vistoria foi um dos motivos que ensejou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) proposta pelo MPF logo após a aprovação da lei, na qual existe um pedido de liminar para que todas as áreas sejam vistoriadas antes da emissão de títulos (Ver mais detalhes na seção 2.2)[3]. Tal pedido ainda não havia sido apreciado até julho de 2010, mas o Decreto 6.992/2009 que regulamentou a Lei 11.952/2009 buscou parcialmente atender essa demanda por vistoria.
Esse decreto estabelece que deve haver vistoria em áreas abaixo de 4 módulos fiscais em três situações: 1) existência de autuação por infração ambiental ou trabalho análogo à escravidão; 2) cadastramento da posse feito via procuração em vez de pelo próprio ocupante; e 3) existência de conflito no imóvel. Ademais, o decreto estabelece que, além do cadastramento das posses, o MDA deve realizar identificação ocupacional por município ou por gleba. Segundo Marco Antônio de Almeida, Procurador da República, essa exigência seria, na prática, uma forma de verificar se todas as áreas cadastradas estão realmente sendo ocupadas, o que atenderia à preocupação de evitar titulação de falsas ocupações e preveniria títulos sobrepostos a áreas de ocupação por povos e comunidades tradicionais[4].
Em relação a imóveis acima de 1,5 mil hectares, a Lei 11.952/2009 estabelece que seus ocupantes poderão regularizar apenas o limite que estiver de acordo com os requisitos previstos nesta norma. Ou seja, a área excedente deverá ser devolvida ao poder público. Assim, de acordo com a legislação vigente, a regularização de áreas acima de 1,5 mil hectares só poderá ocorrer mediante processo licitatório. Para áreas acima de 2,5 mil hectares, continua prevalecendo a exigência constitucional de autorização prévia do Congresso Nacional[5].
Finalmente, uma alteração importante feita pela Lei 11.952/2009 foi delegar a responsabilidade de regularização fundiária na Amazônia diretamente ao MDA e retirá-la do Incra, que até então era o órgão que possuía tal atribuição. Essa alteração deverá vigorar por cinco anos, prazo que poderá ser renovado por igual período. Um dos principais motivos que ensejaram essa mudança foram críticas feitas ao Incra pela morosidade na regularização fundiária. Essa transferência da competência para regularização fundiária na Amazônia gerou a necessidade de criação de uma estrutura específica para atender a essa demanda no MDA. Porém, na prática, o Incra continua sendo um dos principais suportes do MDA nessa função, seja por meio da alocação de funcionários seus para trabalhar no Programa Terra Legal ou pelo apoio técnico de seus departamentos. Esse assunto será mais discutido na seção 3.
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3 Número de referência da Adin no STF: ADI/4269.
4 Informação obtida durante a 5ª reunião do Grupo Executivo Interministerial (GEI) de acompanhamento do Programa Terra Legal, em 25/03/2010, Porto Velho, RO.
5 Art. 49, XVII da Constituição Federal de 1988.
Quadro 1 . Processo polêmico de conversão em lei da Medida Provisória 458/2009.
A MP 458/2009 foi assinada em 10 de fevereiro de 2009 pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Como o trâmite de uma MP é curto e com pouco espaço para interação da sociedade civil[6], ela foi alvo de várias críticas, já que o tema de venda e doação de terras públicas na Amazônia é complexo e necessitava de discussão com diferentes grupos de interesse na região.
Os principais aspectos levantados contra a MP 458/2009 foram: 1) a previsão de doação de terras para imóveis de até um módulo fiscal e longos prazos para pagamento de imóveis maiores, o que representa a premiação de ocupantes irregulares e que se beneficiaram dos recursos naturais nesses imóveis de forma gratuita; 2) a falta de vinculação ao Zoneamento Ecológico-Econômico, considerando que muitos Estados da região ainda não haviam concluído esse processo; e 3) a determinação de vistoria das posses apenas para imóveis acima de 4 módulos fiscais, o que limitaria a capacidade de identificação de conflitos e de sobreposição com territórios ocupados por populações tradicionais (Brito & Barreto, 2009a).
Durante os quase quatro meses de tramita-ção da MP ocorreram apenas quatro debates públicos e a MP foi convertida na Lei 11.952/2009 pelo Congresso Nacional, em junho de 2009. Considerando que essa lei federal incidirá em aproximadamente 670 mil quilômetros quadrados da Amazônia (quase duas vezes os Estados de São Paulo e Paraná juntos), seria recomendável que houvesse ao menos uma audiência pública em cada um dos nove Estados abrangidos por essa lei.
O texto original da MP 458/2009 chegou a sofrer modificações antes de votação pelo Congresso após apresentação do relatório do Deputado Asdrúbal Bentes, relator dessa MP. As modificações propostas no relatório aumentariam a abrangênciada MP ao permitir, por exemplo, que pessoas jurídicas utilizassem as novas regras ou que o prazo de ocupações regularizáveis fosse ampliado até 2009 (Brito & Barreto, 2009b). No entanto, após a votação final, a nova lei federal vedou a possibilidade de regularização de imóveis a pessoas jurídicas, proprietários de imóveis, estrangeiros e funcionários de órgãos ligados a assuntos fundiários. Além disso, ela também limitou a possibilidade de regularização apenas para ocupações realizadas até 1º de dezembro de 2004 (Ver Quadro 2).
Quadro 2. Principais mudanças com as novas regras fundiárias na Amazônia.
6 O prazo para conversão de medidas provisórias em lei é de sessenta dias, prorrogável por igual período quando sua votação não foi encerrada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado (art. 62, §§ 3º e 7 º da Constituição Federal).
7 IN do Incra 45/2008.
8 INs do Incra 45/2008 e 46/2008.
9 INs do Incra 45/2008 e 46/2008.
10 IN do Incra 45/2008.
11 IN do Incra 46/2008.
12 INs do Incra 45/2008 e 46/2008.
2.2. Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin)
Em julho de 2009, o MPF ingressou com a Adin 4.269/2009 contra a Lei 11.952/2009. De acordo com o MPF, os principais aspectos da lei que violariam a Constituição Federal são:
a. Regularização em territórios quilombolas. O MPF entende que a redação da lei 11.952/2009 (art. 4º, § 2º) pode ensejar uma interpretação errônea de que territórios quilombolas poderiam ser regularizados em favor de terceiros, o que seria inconstitucional. Nesse caso, o MPF solicita que o Superior Tribunal Federal (STF) vincule a interpretação da lei à Constituição a fim de evitar posicionamentos diferentes na aplicação dessa lei.
b. Dispensa de vistoria obrigatória para imóveis abaixo de 4 módulos fiscais. A ausência de verificação de imóveis abaixo de 4 módulos fiscais antes da emissão de títulos seria uma afronta aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. O MPF acredita que o argumento de economia de tempo dos órgãos fundiários, usado para embasar a dispensa de vistoria, colocaria em grande risco o patrimônio público e o direito de grupos étnicos e culturais, como indígenas, quilombolas e populações tradicionais. Dessa forma, o MPF solicita que o artigo 13 da Lei 11.952/2009, que fala da dispensa de vistoria, seja declarado inconstitucional.
c. Recuperação de áreas degradadas posterior à titulação. Segundo o MPF, a lei falhou com o dever constitucional de proteção ao meio ambiente quando não condicionou a regularização fundiária à recuperação prévia das áreas degradadas no art.15 da Lei 11.952/2009. Por isso, pede que esse artigo seja interpretado conforme a Constituição, de forma a garantir que o critério de aproveitamento racional e adequado dos imóveis, previsto na Lei 11.952/2009, inclua a necessidade de recuperação de passivo ambiental.
d. Hipótese de retomada da área por desmatamento em Área de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL). O MPF acredita que a lei não deveria restringir a hipótese de retomada das áreas tituladas apenas na ocorrência de desmatamento em APPs e RLs. Pelo dever constitucional de proteção ao meio ambiente, outros crimes ambientais deveriam ser considerados, como desmatamento ilegal fora dessas áreas e exploração florestal sem autorização. Assim, o MPF solicita que a interpretação da lei também inclua no critério de aproveitamento racional e adequado dos imóveis, previsto na Lei 11.952/2009, a obrigação de não realizar qualquer tipo de desmatamento irregular nos imóveis.
e. Diferenças nos prazos de alienação dos imóveis regularizados. A lei permite que imóveis acima de 4 módulos fiscais sejam vendidos três anos após a titulação, mas fixa prazo mínimo de dez anos para imóveis abaixo desse tamanho. Essa disposição fere o princípio da isonomia ao impor critérios discriminatórios para pequenos proprietários de terra. Nesse caso, o MPF solicita a declaração de inconstitucionalidade dos artigos que estabelecem essa diferença (art. 15, §§4º e 5º) e a determinação de que o prazo para alienação de todos os imóveis seja, no mínimo, de 10 anos.
Na mesma ação, o MPF solicita que todos os pedidos descritos acima sejam concedidos via liminar, ou seja, antes do julgamento final da ação. Caso sejam deferidos, o efeito da liminar afetaria principalmente a fase de vistoria do Programa Terra Legal, que deve iniciar ainda em 2010 (como será visto nas seções posteriores). Nesse caso, o MDA seria obrigado a vistoriar todos os imóveis, mesmo aqueles abaixo de 4 módulos fiscais.
Em resposta às alegações do MPF, a Advocacia Geral da União (AGU) foi contrária a todos os argumentos, alegando que as medidas previstas na Lei 11.952/2009 devem ser interpretadas em consonância com a legislação sobre populações quilombolas e tradicionais e que, por isso, não haveria risco de regularização de posses nos territórios ocupados por esses grupos. Sobre a exigência de vistoria, a AGU considera que a lei segue o princípio da eficiência administrativa ao não prever a obrigatoriedade de vistoria prévia em todos os imóveis. Afirma também que em casos de constatação de conflitos, as vistorias serão realizadas e que essas não seriam as únicas formas de obter informações sobre a situação dos imóveis. Por exemplo, o MDA utilizará dados do SNCR, do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam), da Ouvidoria Agrária Nacional (OAN) e do Incra.
Sobre as alegações de falha na proteção ambiental, a AGU afirma que a obrigação de recuperação ambiental permanecerá, mesmo após a emissão do título pelo Programa Terra Legal. Alega também que a lei exclui da possibilidade de regularização as áreas caracterizadas como florestas públicas ou Unidades de Conservação. Finalmente, afirma que outras leis em vigor também serão aplicadas para proteção ambiental, a exemplo da Lei de Crimes Ambientais.
A AGU também justifica o tratamento diferenciado de pequenas e médias posses, já que a própria legislação agrária faz essa distinção de categorias. Além disso, imóveis abaixo de 4 módulos fiscais possuem garantias mais favoráveis de aquisição segundo a lei (por exemplo, doação ou valores abaixo do mercado) e, por isso, devem ter tratamento diferenciado nas regras de venda para terceiros, com prazos maiores para alienação. A AGU alega ainda que essa medida visa combater o mercado ilegal de terras e evitar a concentração fundiária, fixando o pequeno proprietário por mais tempo na terra.
Até julho de 2010 o pedido de liminar da Adin não havia sido julgado. De fato, não havia nenhum andamento processual registrado em 2010 para essa ação (STF, 2010). Um efeito da demora no julgamento, caso os argumentos do MPF prevaleçam no STF, será o impacto em títulos já emitidos até que a decisão ocorra. Por exemplo, no caso dos títulos emitidos sem vistoria, o STF pode determinar que todos sejam invalidados para se submeterem à vistoria. Outra possibilidade seria reconhecer a validade dos títulos já emitidos, mas determinar que os posteriores se submetam à vistoria prévia. Dessa forma, é essencial que essa ação seja julgada o quanto antes pelo STF para determinar qual o seu impacto na implementação da lei por meio do Programa Terra Legal, que será analisado de forma mais detalhada na próxima seção.
Programa Terra Legal
3.1. Estrutura administrativa
Para implementar as novas regras de regularização fundiária na Amazônia o MDA criou o Programa Terra Legal, com o objetivo de beneficiar até 300 mil posseiros dentro das glebas federais em 463 municípios na Amazônia Legal (Figura 1). Para isso, foi necessário adaptar a estrutura executiva do MDA para exercer essa nova atribuição, o que ocorreu ainda no período de vigência da MP 458/2009.
Figura 1. Glebas federais na Amazônia de atuação do Programa Terra Legal.
O Decreto 6.813/2009 criou, dentro da Secretaria Executiva do MDA, o Departamento de Planejamento, Monitoramento e Avaliação da Regularização Fundiária na Amazônia Legal. O mesmo decreto também criou o cargo de Secretário Executivo Adjunto de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, que tem como funções: 1) coordenar, normatizar e supervisionar o processo de regularização fundiária de áreas rurais na Amazônia Legal; 2) expedir os títulos de terra; 3) celebrar contratos, convênios e termos necessários ao cumprimento das metas e objetivos relativos à regularização fundiária na Amazônia Legal; e 4) determinar à Superintendência Nacional de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, órgão do Incra, a execução de medidas administrativas e atividades operacionais relacionadas à regularização fundiária na região (Figura 2).
Para auxiliar as funções do Secretário Executivo Adjunto de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, o MDA criou onze coordenações estaduais do Terra Legal, sendo uma em cada Estado da Amazônia Legal e duas adicionais no Pará (Santarém e Marabá). Na maioria dos casos, os coordenadores estaduais e técnicos que trabalham nos Estados são funcionários do Incra, que foram alocados nessas novas funções. Além disso, o próprio Incra também colabora com o Terra Legal por meio de sua Superintendência Nacional de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, que está subordinada ao MDA. Por sua vez, esta superintendência também possui representantes estaduais (chefes de divisão), que apoiam as coordenações estaduais do Terra Legal (Figura 2). O remanejamento de funcionários do Incra para essa função afetou a execução de outras atividades desse órgão, como pode ser constatado no relatório de atividades de 2010 do Incra. Nesse documento, o órgão indica que houve grande deslocamento dos servidores do setor de Cadastro Rural para atuar no Terra Legal, o que afetou as atividades de cadastramento nas 11 Superintendências do Incra na Amazônia Legal (MDA, 2010a). Porém, segundo o Coordenador Estadual do Terra Legal no Pará, em Janeiro de 20009 o MDA não deverá deslocar mais do que 10% de todos os funcionários do Incra na Amazônia Legal para atender o Programa[13].
A estrutura do Terra Legal também inclui o Grupo Executivo Intergovernamental (GEI), criado pelo Decreto sem número de 27 de abril de 2009 (Figura 2). O GEI, que se reúne a cada três meses, define diretrizes e monitora as ações de regularização fundiária no Terra Legal. O grupo é formado por órgãos do governo federal e estaduais, incluindo um representante de cada governo dos Estados da Amazônia Legal, Casa Civil, MDA, Incra, Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República, Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério das Cidades (MC) e MPOG. A sociedade civil participa do GEI na categoria de convidados, ou seja, sem direito a voto nas decisões, e tem direito a apenas três representações. Atualmente, essas vagas são ocupadas pela Confederação Nacional de Agricultura (CNA), Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) e Fórum Amazônia Sustentável, o qual é representado pelo Grupo de Trabalho Amazônico (GTA) e pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). O MPF também passou a participar do GEI como convidado a partir de 2010.
Além disso, cada Estado possui um Grupo Executivo Estadual, com funções similares ao GEI, mas em nível local (Figura 2). Em geral, esses grupos são formados pela coordenação estadual do Terra legal, algumas secretarias estaduais (por exemplo, secretaria de meio ambiente), órgão de terra, representação estadual da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e centro regional do Sipam. Nos Estados, o Terra Legal também criou um Grupo de Controle Social, formado por representações locais da sociedade civil, MPF e Ministério Público Estadual (MPE), além de outros órgãos. A frequência de reuniões desses grupos não é fixa.
Figura 2. Estrutura executiva do Programa Terra Legal.
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13 Informações obtidas em entrevista com Raimundo Alves (Castanheira), coordenador estadual do Terra Legal no Pará, em 14/01/2010.
3.2. Execução de atividades
As principais fases para a titulação de imóveis no Programa Terra Legal são cadastramento, georreferenciamento, vistoria (quando previsto em lei), emissão do título (Figura 3) e monitoramento pós-titulação. No lançamento do Programa, em 2009, o MDA anunciou que a execução das quatro primeiras fases duraria apenas 60 dias em virtude da mudança e simplificação das regras de regularização promovidas pela Lei 11.952/2009. No entanto, o início da implementação da lei e do programa demonstrou que o grande passivo de problemas fundiários da Amazônia Legal fora subestimado quando essa meta foi estabelecida.
No primeiro ano do Programa Terra Legal, a atuação em campo concentrou-se na fase de cadastramento e, até abril de 2010, não haviam sido emitidos títulos de terra provenientes desses cadastros efetuados. No entanto, ainda em 2009, o MDA entregou 276 títulos de terra para posseiros na região da BR-163 no Pará e Mato Grosso e também em Rondônia (MDA, 2010b). Esses imóveis representam demandas para regularização fundiária anteriores ao Programa Terra Legal e ações de georreferenciamento realizadas entre 2007 e 2008. As seções seguintes avaliam de forma mais detalhada os principais avanços e dificuldades ocorridos nas quatro fases iniciais do Terra Legal em seu primeiro ano.
Figura 3. Principais fases do Programa Terra Legal para emissão de títulos de terra.
Cadastramento de Posseiros
A primeira etapa para obtenção do título via Terra Legal é o cadastramento de posseiros durante as expedições que são realizadas pelo programa. A prioridade de cadastramento no primeiro ano do programa foi para posses em municípios incluídos no Programa Territórios da Cidadania[14] e no Programa Arco Verde[15], ambos do governo federal.
Posseiros de municípios não abrangidos por esses programas podem realizar o cadastramento de suas terras nos locais em que houver atendimento do Programa Terra Legal, mas não terão prioridade para titulação de terras. Além disso, mesmo que o posseiro já tenha realizado pedidos de regularização de posse anteriores ao Terra Legal, ele deve fazer o cadastramento no programa, pois pedidos anteriores não serão resgatados.
Além dos cadastramentos feitos nas expedições municipais, o Terra Legal também incorporou dados cadastrais de posses existentes em bancos de dados de outras instituições, como o de Declarações de Aptidão ao Pronaf (DAP), administrado pelo Incra; da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará); Planos de Manejo Comunitário do Estado do Amazonas; Instituto de Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam); e Agência de Defesa Sanitária Agrossilvopastoril do Estado de Rondônia (Idaron) (MDA, 2010c).
As informações dos cadastros são inseridas no Sisterleg, o sistema criado para gerenciar os dados do Terra Legal. As informações básicas desses cadastros são disponibilizadas no sítio eletrônico do programa, incluindo nome do posseiro, endereço, tamanho do imóvel, município, Estado e número do processo. A partir do Sisterleg, os dados são repassados ao Centro de Inteligência do Terra Legal, que envolve o Sipam e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Então, os dados do cadastramento são cruzados com informações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e Receita Federal (por exemplo, com dados do ITR). Cada cadastro inserido no Sisterleg forma um processo administrativo diferenciado, que é encaminhado para a fase de georreferenciamento (Figura 4).
A análise do Centro de Inteligência também detecta casos de cadastros que contém o mesmo telefone ou que possuem o mesmo sobrenome para identificação de casos suspeitos de fracionamento irregular de imóveis. Além disso, o programa criou um sistema de denúncias via Internet[16]. As denúncias recebidas também são avaliadas pelo Centro de Inteligência e por funcionários do programa, que exibem as reclamações e suas respostas de encaminhamentos no próprio sítio eletrônico.
A combinação de ações de campo e a importação de dados de sistemas resultaram em 74.132 cadastros de posses, correspondentes a aproximadamente 8,3 milhões de hectares no primeiro ano do Terra Legal. Segundo o MDA, mais da metade dos cadastros efetuados até maio de 2010 (52%) ocorreu com a importação de dados das DAPs (MDA, 2010d).
Figura 4. Procedimentos na fase de cadastramento de posses no Programa Terra Legal.
No entanto, um problema em potencial dessa prática é que não há previsão legal de vistoria obrigatória para imóveis cadastrados via importação de dados de outros sistemas. Ou seja, os imóveis de até 4 módulos fiscais cadastrados dessa forma podem ser dispensados de vistoria e, com isso, não seria possível confirmar se essas informações são verídicas e se essas áreas realmente estão sendo ocupadas pelas pessoas indicadas nos sistemas. Dessa forma, é recomendável que o MDA realize vistorias em posses cadastradas via importação de dados e abaixo de 4 módulos fiscais.
Além disso, durante um seminário realizado em 10 de junho de 2010, em Santarém, pelo MPF, representantes de sindicatos de trabalhadores rurais afirmaram ter identificado nomes de assentados de reforma agrária dentre os cadastros exibidos na internet. Contudo, pessoas beneficiadas com lotes de reforma agrária não podem ser beneficiárias da regularização fundiária via Lei 11.952/2009. Para responder a esse tipo de acusação e aumentar a transparência das ações do Programa, o MDA deve divulgar a atualização das listas de cadastramentos após as análises do Centro de Inteligência do Terra Legal. Mesmo que alguns casos necessitem de comprovação de fatos via vistoria, situações como as apontadas no seminário em Santarém podem ser facilmente excluídas do cadastro após checagem no banco de dados de assentamentos de reforma agrária do Incra.
Finalmente, outro fato que merece atenção em relação ao cadastramento é a baixa quantidade de denúncias no primeiro ano do programa, chegando a 49 casos até 23/04/2010 (MDA, 2010e). Um motivo possível para esse resultado seria a limitação de acesso à internet nos municípios da Amazônia, principalmente na zona rural. Dessa forma, é essencial que o MDA amplie a forma de divulgação da lista de cadastro e recebimento de denúncias. Para isso, pode criar um disk denúncias e fazer parcerias com instituições locais nos municípios, como sindicatos de trabalhadores rurais.
Para um entendimento mais aprofundado das características dos cadastros efetuados no primeiro ano do Terra Legal, analisamos os dados divulgados no portal eletrônico do programa, conforme será explicado a seguir.
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14 O Programa Territórios da Cidadania objetiva promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de cidadania. Mais informações em: http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/one-community. Acesso em: 13 abr. 2010.
15 O Programa Arco Verde foi direcionado a municípios que foram alvo de grandes operações de fiscalização ambiental em 2008/2009. O Arco Verde pretende levar ações de incentivo ao desenvolvimento sustentável nessas localidades. Mais informações em: http://portal.mda.gov.br/arcoverde/. Acesso em: 13 abr. 2010.
16 http://portal.mda.gov.br/terralegal
4.1. Metodologia de análise de cadastros
O objetivo das análises foi identificar as principais estatísticas dos cadastros por Estado e municípios, incluindo municípios com maior número de imóveis e área inseridos no programa. Também avaliamos a quantidade de imóveis e área cadastrada em cada classe de tamanho estabelecida pela Lei 11.952/2009: abaixo de 1 módulo fiscal, entre 1 e 4 módulos fiscais e entre 4 e 15 módulos fiscais. Para isso, utilizamos a média de tamanho em hectares por módulo fiscal em cada Estado da Amazônia Legal, considerando municípios que possuem glebas federais (Anexo 1).
Além disso, avaliamos a quantidade de área em cada município que poderia ser objeto de regularização fundiária, já que ainda não tiveram destinação que modifique sua titularidade fundiária. A partir desse dado, calculamos o percentual dessa área que foi objeto de cadastramento. Para obter essa informação, contabilizamos em cada município a quantidade de área transformada em Áreas Protegidas, com exceção de Áreas de Proteção Ambiental (APA)[17], e áreas de projetos de assentamento. Depois subtraímos esse valor da área total municipal para encontrar o total de área não afetada e que possivelmente estaria apta a ser alvo de regularização fundiária[18]. Desse valor, extraímos o percentual que foi objeto de cadastramento em cada município.
Coletamos informações dos cadastros de posses no sítio eletrônico do portal do Programa Terra Legal entre os dias 18/06 e 21/06, quando o site indicava 74.132 posses cadastradas em 8.369.872 hectares (MDA, 2010f). Para a análise deste relatório, foram excluídos: 1) os cadastros repetidos, ou seja, aqueles que possuíam o mesmo número do processo de cadastro, mesmo nome do requerente, mesma área requisitada e mesma indicação de endereço; 2) cadastros cuja área cadastrada era igual a zero; 3) cadastros cujo nome do Estado aparecia no lugar do nome do município; e 4) cadastros cujo Estado ou município estava fora da Amazônia Legal e, portanto, fora da área de atuação legal do programa. Com isso, a lista final utilizada na análise possui 73.596 cadastros em 8.300.647 hectares.
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17 As APAs não modificam a titularidade fundiária da terra, ao contrário de outras categorias de Áreas Protegidas nas quais a área passa a ser pública, mesmo que se sobreponha a áreas privadas (que nesse caso, devem ser desapropriadas). Assim, a criação de uma APA, a princípio, não impede que ocorra regularização fundiária em seu interior.
18 Ressaltamos que para obter o valor mais exato da área não afetada em cada município seria necessário subtrair também o total de áreas que já possuem titulação privada, a área considerada urbana e a área ocupada por populações tradicionais e indígenas que ainda não tiveram seus direitos à terra reconhecidos. Esta última possui outras regras para regularização fundiária, também definidas pela Lei 11.952/2009.
4.2. Resultados gerais do cadastramento no primeiro ano do programa
Dentre os cadastros analisados, o Pará foi o Estado com o maior número de posses e proporção de área: 49% dos imóveis (35.815 posses) e 48% (4 milhões de hectares) da área cadastrada (Figura 5). Em segundo lugar ficou Rondônia, com 21% (15.498) das posses inseridas no cadastro e 24% da área (1,9 milhão de hectares). Esses dois Estados também tiveram maior número de cidades visitadas nos mutirões do Terra Legal, com 55 e 28 municípios, respec-tivamente (Figura 6) (MDA, 2010g).
Os Estados com menor expressão no cadastramento foram Roraima e Amapá, com menos de 1% dos imóveis e da área cadastrada (Figura 5 e Tabela 1). Esses também foram os Estados com menor número ou nenhum município visitado no mutirão do programa em seu primeiro ano (Figura 6).
A área média das posses cadastradas em todos os Estados foi de 113 hectares. Mato Grosso apresentou o maior tamanho médio; 254 hectares (Tabela 1). Além disso, o cadastro nos Estados atingiu, em média, apenas 4% da área potencialmente passível de regularização, ou seja, fora de Áreas Protegidas (exceto APA) e assentamentos. O destaque ficou com Rondônia, onde os cadastros corresponderam a 22% das áreas onde possivelmente não há definição fundiária (Tabela 1).
Figura 5. Distribuição percentual do número e da área de posses cadastrados, por Estado, no primeiro ano do Programa Terra Legal (2009).
Figura 6. Distribuição do número de cidades visitadas, por Estado, no primeiro ano do Programa Terra Legal (n=120) (2009).
Tabela 1. Principais estatísticas do cadastro de posses, por Estado, no primeiro ano do Programa Terra Legal (2009).
A maior parte de área cadastrada (39%) estava concentrada nos imóveis acima de 4 e menores que 15 módulos fiscais, apesar de representarem apenas 8% do número de imóveis cadastrados (Figura 7). Esses são imóveis acima da categoria de agricultura familiar[19] e que, de acordo com a Lei 11.952/2009, devem pagar pela regularização da terra. Por outro lado, considerando o número de posses cadastradas, a maior parte (63%) concentrou-se na categoria de até 1 módulo fiscal (até 76 hectares), que serão objeto de doação pela Lei 11.952/2009. Essas posses correspondiam a 16% da área total cadastrada (Figura 7).
Além disso, 712 posses acima de 15 módulos fiscais foram cadastradas, mesmo que a Lei 11.952/2009 não permita a regularização desse tipo de imóvel no Programa Terra Legal. Esses imóveis somavam apenas 1% dos cadastros, mas abrangiam uma área equivalente a 13% dos imóveis cadastrados (1 milhão de hectares). Mais da metade desses casos (59%) estava no Pará (Figura 8), principalmente nos municípios de Altamira, Portel e Novo Progresso. De acordo com a legislação, os ocupantes desses 712 imóveis dispõem de duas opções para regularizar suas posses: poderão pleitear a regularização de até 1,5 mil hectares e devolver o excedente ao domínio público (art. 14 da Lei 11.952/2009) ou poderão regularizar a totalidade desde que dentro de um processo de licitação pública, segundo regras da Lei 8.666/1993.
Figura 7. Distribuição do número e da área de posses cadastrados, por tamanho de módulo fiscal (MF), no primeiro ano do Programa Terra Legal (2009).
Figura 8. Distribuição percentual do número e da área de posses acima de 15 módulos fiscais cadastrados, por Estado, no primeiro ano do Programa Terra Legal.
No detalhamento por Estado, Mato Grosso e Amazonas apresentaram maior concentração de terras. No Mato Grosso, quase metade das posses (46%) estão abaixo de 1 módulo fiscal, mas ocupam apenas 7% da área total cadastrada. Por outro lado, imóveis acima de 15 módulos fiscais (acima do limite passível de regularização pelo Terra Legal) representam apenas 5% das posses, mas ocupam 30% do total de área cadastrada. Já no Amazonas, 28% da área está cadastrada em 2% de posses acima de 15 módulos fiscais, enquanto que os 76% de posses de até 1 módulo fiscal ocupam 19% da área cadastrada.
O Pará também apresentou baixa proporção de área para imóveis abaixo de 1 módulo fiscal (17%), apesar de essa categoria representar 67% do número de imóveis cadastrados. Finalmente, em Rondônia, a maior concentração de área foi na categoria de imóveis entre 4 e 15 módulos fiscais, com 56% da área cadastrada em apenas 14% do total de posses (Figura 9). Mais detalhes das estatísticas do cadastro de terras por Estado no Anexo 2.
Figura 9. Distribuição percentual do número e da área de posses cadastrados, por Estado e tamanho de módulo fiscal (MF), no primeiro ano do Programa Terra Legal (2009).
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19 De acordo com a Lei 11.326/2006, Art.3º, I, é agricultor familiar aquele que não detém, a qualquer título, área maior do que 4 módulos fiscais, dentre outros requisitos.
Georreferenciamento
Após a fase de cadastramento de posses, os dados registrados pelo MDA são encaminhados à análise do Centro de Inteligência para apuração de irregularidades e também para o georreferenciamento. É nesta etapa que são coletadas as localizações geográficas exatas das posses, que passam a integrar a base de dados espaciais do Terra Legal.
O georreferenciamento é uma demanda relativamente recente para imóveis rurais e busca solucionar um problema antigo e frequente nos títulos de terra na Amazônia: a falta de precisão em sua localização. Grande parte dos títulos antigos possuía referências geográficas muito vagas (por exemplo, às margens de um determinado rio) e isso dificultava o controle sobre sua localização. O georreferenciamento foi introduzido como demanda do Incra em processos de recadastramento de imóveis rurais desde 1997[20], mas foi apenas após a Lei 10.267/2001 e o Decreto 4.449/2002 que sua exigência foi consolidada (Barreto et al., 2008).
De acordo com essas normas, o possuidor do imóvel deve apresentar ao Incra o georreferenciamento de sua área, geralmente nas convocações feitas pelo instituto para recadastramento dos imóveis e emissão do CCIR. O georreferenciamento deve seguir as instruções publicadas pelo Incra por meio de normas técnicas e ser elaborado por profissional habilitado no Incra e com Anotação de Responsabilidade Técnica (ART). Imóveis abaixo de 4 módulos fiscais são isentos dos custos do georreferenciamento pelo Incra. Em seguida, o instituto faz a certificação do material apresentado, ou seja, certifica que as coordenadas do imóvel apresentado não se sobrepõem a nenhuma outra constante no cadastro georreferenciado do Incra e que o memorial descritivo do imóvel atende as exigências técnicas.
Em geral, o georreferenciamento e certificação são demorados. Para acelerar tais procedimentos no Terra Legal, o MDA adotou três medidas principais: terceirização do trabalho de campo, simplificação de regras e desenvolvimento de software para analisar dados do georreferenciamento.
Primeiro, o MDA contratou empresas para realizar o georreferenciamento de todas as posses. A terceirização desse trabalho poderá agilizar a execução do trabalho nos municípios da Amazônia, pois se o Incra realizasse o trabalho, precisaria recrutar muitos novos funcionários, o que implicaria em alto custo e longo período para contratação via concurso público.
Segundo, simplificou a norma para georreferenciamento e certificação específica para regularização fundiária na Amazônia. Para tanto, o MDA criou um grupo de trabalho interno para identificar as principais dificuldades impostas pelas normas vigentes de georreferenciamento e propor modificações e aperfeiçoamento. Esse trabalho resultou na Norma Técnica para Georreferenciamento em Ações de Regularização Fundiária Aplicada à Amazônia Legal, aprovada pela Portaria do Incra 01/2009. De acordo com o MDA, algumas das principais diferenças desta nova norma para a anterior são: 1) a redução do número de laudos que devem ser preparados pelos técnicos (de 14 para 5); 2) a padronização de peças técnicas para facilitar a análise na fase de certificação; e 3) a definição de uma peça técnica central, que resume todo o resultado do georreferenciamento, acelerando, assim, a fase de certificação[21].
Por último, funcionários do MDA, em parceria com o Sipam, desenvolveram um software para recepcionar digitalmente as informações coletadas em campo pelas empresas. Segundo o MDA, esse sistema permitirá identificar automaticamente informações inconsistentes, que serão então avaliadas em campo pelo Incra. O MDA espera que essa medida tenha grande impacto na redução de tempo na fase de certificação do georreferenciamento.
Em relação à terceirização do georreferenciamento, as licitações para contratação de empresas no primeiro ano do programa foram realizadas em outubro, novembro e dezembro de 2009 e março de 2010. Para esses contratos, foram estimados trabalhos em aproximadamente 62 mil imóveis nos nove Estados da Amazônia Legal (MDA, 2010h). Os trabalhos de campo iniciaram no final de 2009 e início de 2010.
Apesar de, inicialmente, o programa ter previsto realizar o georreferenciamento apenas das posses cadastradas no Terra Legal, a realidade de campo mostrou-se mais complexa e demandou adaptações na execução do programa. Mesmo que o MDA possua dados espaciais das glebas federais nas quais haverá regularização fundiária, a existência de títulos de propriedades no interior dessas áreas é incerta.
Por exemplo, no passado, o governo federal emitiu Contratos de Promessa de Compra e Venda (CPCV) e Contratos de Alienação de Terras Públicas (CATP) nessas glebas federais que nunca foram georreferenciados e cujas informações estão distribuídas nos escritórios estaduais do Incra. Segundo levantamento realizado pelo MDA, existem cerca de 130 mil títulos nessa situação na Amazônia (Guedes, 2010). Antes de emitir um novo título, é imprescindível identificar a localização desses imóveis, o que envolverá trabalho de campo e também de coleta de dados nos escritórios do Incra. Dessa forma, a orientação mais recente da coordenação do programa é que as empresas contratadas via pregão realizem o georreferenciamento de todas as ocupações encontradas nos quilômetros em que forem alocadas para trabalhar. A prioridade deve ocorrer nas glebas em que ocorra maior concentração de cadastramentos (MDA, 2010i).
As empresas devem iniciar os trabalhos fazendo o georreferenciamento dos perímetros das glebas selecionadas. Isso é necessário porque a maioria das glebas federais não foi delimitada com as normas técnicas atuais de georreferenciamento e, portanto, possuem grande margem de imprecisão. Em alguns casos, essa delimitação implicará também estipular limites mais precisos entre glebas federais e estaduais. No entanto, a execução do georreferenciamento não abrangerá o interior das glebas estaduais e nem das glebas que atualmente estão sob disputa judicial entre governo estadual e federal. Por exemplo, no Pará, pelo menos duas glebas são objeto de disputa: gleba Cauaxi, no município de Ulianópolis, e gleba Maguari, no sul do Estado. Esta última está em disputa judicial há mais de 30 anos.
Após essa etapa de georreferenciamento dos perímetros das glebas, as empresas contratadas iniciarão a delimitação de cada imóvel, independente do seu tamanho. A execução do georreferenciamento será mais complexa nos imóveis localizados entre glebas de jurisdições diferentes, ou seja, parte na federal e parte na estadual. Segundo a coordenação estadual do Terra Legal no Pará, nesses casos as empresas avaliarão a possibilidade de delimitar as glebas seguindo os limites das propriedades localizadas nas suas bordas a fim de evitar que imóveis sejam repartidos entre duas jurisdições (Reis, 2010a).
Após a conclusão do georreferenciamento em cada gleba, o MDA identificará as áreas de atuação do Programa Terra Legal (de até 15 módulos fiscais) e também fará um diagnóstico das áreas maiores para avaliar os encami-nhamentos. Entre as possibilidades estão arrecadação (ou seja, devolução ao poder público) de áreas cujos tamanhos necessitariam de autorização do Congresso Nacional para serem regularizadas (acima de 2,5 mil hectares); regularização via licitação para áreas acima de 15 módulos fiscais e inferiores a 2,5 mil hectares; ou ainda abertura de discussão sobre a possibilidade de novas regras para regularizar essas áreas. Neste último caso, a pressão pelos ocupantes de grandes imóveis será crescente para flexibilizar a legislação atual e permitir que seus imóveis sejam regularizados sem necessidade de licitação.
Concluída a fase de georreferenciamento e certificação, os processos seguem para a fase de vistoria (se acima de 4 módulos fiscais ou abaixo desse tamanho nas hipóteses previstas em lei) ou diretamente para titulação (quando a vistoria não é exigida pela Lei 11.952/2009 ou Decreto 6.992/2009). No entanto, antes que os processos avancem para a fase de titulação, é fundamental que o MDA divulgue nos municípios de atuação do programa os mapas produzidos com dados georreferenciados.
Apesar dos dados de cadastramento de posses estarem disponíveis na internet, eles não são suficientes para identificar sobreposições de pelo menos dois tipos: entre diferentes demandas de titulação e entre demanda por titulação e áreas já destinadas, como por exemplo, propriedades privadas não georreferenciadas, Áreas Protegidas e assentamentos. Por isso, é recomendável que o MDA divulgue os mapas com as posses nos municípios onde ocorreram as ações de georreferenciamento para que os atores locais possam se pronunciar a respeito.
Por exemplo, os mapas devem ser enviados para as prefeituras, associações de produtores, sindicatos de trabalhadores rurais e movimentos sociais. Essas instituições conhecem sobre a realidade da ocupação local e podem indicar problemas de sobreposições, limites incorretos de posses (por exemplo, casos em que os requerentes indicam uma área maior do que ocupam) ou até de solicitações feitas por pessoas que não ocupam as áreas diretamente. Esse processo de consulta será particularmente importante para imóveis nos quais não é obrigatória a vistoria prévia à emissão do título.
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20 O recadastramento de imóveis rurais é um processo coordenado pelo Incra para atualizar as informações do Sistema de Cadastro de Imóveis Rurais e detectar irregularidades relacionadas à titulação de imóveis. Mais detalhes em Barreto, P; Pinto, A.; Brito, B. & Hayashi, S. 2008. Quem é dono da Amazônia. Uma análise do recadastramento de imóveis rurais. Belém, Imazon: 74p.
21 MDA. Terra Legal. Apresentação realizada em 29 de maio de 2009 para o Grupo Executivo Intergovernamental.
Vistoria
Após o georreferenciamento, parte das solicitações de regularização segue para a fase de vistoria. Esta é uma exigência legal em todos os imóveis acima de 4 módulos fiscais. Abaixo desse tamanho, a vistoria é obrigatória em três situações: 1) casos em que houve identificação de conflitos pela posse da terra; 2) autuação por crime ambiental ou por manter trabalhadores em condição análoga à escrava; ou 3) quando o cadastramento foi feito via procuração, ou seja, não foi feito pelo posseiro.
Essas vistorias, ao contrário daquelas realizadas em ações de desapropriação, são mais rápidas, pois não têm como objetivo avaliar o imóvel e as benfeitorias existentes, e sim comprovar a ocupação direta anterior a 2004. No entanto, essa característica não foi considerada na Lei 11.952/2009, que limitou a obrigatoriedade de vistoria prévia.
Mesmo que nenhuma vistoria tenha ocorrido no primeiro ano do programa em virtude do atraso no início da fase de georreferenciamento, esse tema tem gerado vários desdobramentos e questionamentos, principalmente envolvendo os riscos de titulações sem vistoria em áreas com outros tipos de ocupação prioritária pela lei (como áreas de povos indígenas e comunidades tradicionais). A seguir, descrevemos medidas legais e operacionais que foram implementadas no primeiro ano do programa para reduzir os riscos de titulação indevida em áreas sem vistorias, além das limitações que ainda permanecem nesse tema.
6.1. Recomendação do Ministério Público Federal em Santarém
O MPF em Santarém emitiu uma recomendação para que a coordenação estadual do Terra Legal realize vistorias em todos os imóveis (MPF, 2009), em especial nos municípios onde foram identificadas comunidades quilombolas e tradicionais. A título de exemplo, o MPF enviou à coordenação do Terra Legal uma lista contendo 525 demandas para reconhecimento de territórios quilombolas e de populações tradicionais em 64 municípios do Pará. A vistoria prévia nesses municípios evitaria sobreposições não apenas em casos de outros títulos privados, mas principalmente para casos de posses de populações tradicionais cujos direitos territoriais ainda não foram reconhecidos pelos órgãos competentes.
A princípio, a coordenação estadual do Terra Legal no Pará optou por não seguir a recomendação do MPF e realizar vistorias apenas nos casos previstos na Lei 11.952/2009 e no Decreto 6.992/2009. No entanto, esse posicionamento foi revisto e, por determinação da coordenação geral do Terra Legal, os municípios indicados pelo MPF em sua recomendação não serão incluídos nos trabalhos do Terra Legal em 2010.
Além disso, segundo o Secretário Adjunto de Regularização Fundiária da Amazônia Legal, o MDA pretende fazer uma parceria com o MMA para identificação de áreas de uso de populações tradicionais. O MMA atuaria em conjunto com organizações de comunidades tradicionais na Amazônia para identificar áreas de uso de comunidades com o uso de GPS para delimitar polígonos. Essas áreas seriam então excluídas da área de atuação do Terra Legal e, apesar de não garantirem a regularidade fundiária das populações ali residentes, ajudariam a criar uma zona de conforto para atuação do Terra Legal nesses municípios.
A implementação da proposta de parceria com o MMA e movimentos sociais seria um grande avanço para prevenir titulações do Terra Legal em áreas que possuem outras destinações prioritárias por lei e cujo processo de regularização é mais demorado. Esse trabalho também poderia iniciar nos órgãos competentes processos de reconhecimento dos territórios das populações identificadas de acordo com a legislação específica para esse assunto. No entanto, para que essa seja realmente uma medida de prevenção, as ações de identificação deveriam anteceder o início de emissão de títulos. Contudo, como será exposto na seção 7, o Programa pretende emitir já em 2010 em torno de 23 mil títulos na Amazônia, o que pode limitar o efeito da parceria proposta ao MMA.
6.2. Manifestação prévia de órgãos ambientais e fundiários
Outra medida adotada para reduzir o risco de titulações indevidas é a obrigatoriedade de consulta prévia sobre glebas a serem regularizadas. Essa consulta deve ser feita aos órgãos competentes na área ambiental e no reconhecimento de direitos territoriais de populações tradicionais e indígenas, de acordo com o Decreto 6.992/2009.
Esses órgãos têm até trinta dias para se manifestarem se houver alguma demanda sobre as mesmas glebas que serão destinadas à regularização fundiária privada. Caso exista interesse e o MDA também mantenha interesse na regularização, a decisão caberá ao GEI. No entanto, a falta de pronunciamento desses órgãos no prazo de trinta dias será interpretada como ausência de oposição à regularização.
Considerando que outros órgãos, principalmente a Fundação Nacional do Índio (Funai), possuem restrições financeiras e de recursos humanos, é improvável que atendam ao prazo de trinta dias indicado no decreto. Por exemplo, Leila Souto Maior, uma coordenadora da Funai em Brasília, informou que a instituição tem passado por uma reestruturação desde 2009 e que isso tem afetado a capacidade de interagir com outras instituições. Mesmo assim, ela afirmou que a Funai encaminhou ao Programa Terra Legal indicações de municípios onde haveria demandas de demarcação de Terras Indígenas. Porém, como o processo para reconhecimento envolve etapas longas, incluindo estudos antropológicos, a Funai não possui polígonos que indiquem exatamente onde seriam as novas Terras Indígenas.
Para facilitar e agilizar o processo de interação entre o Terra Legal e outras instituições, os órgãos interessados deveriam constituir um grupo de trabalho para tratar dos interesses e conflitos em cada gleba que será regularizada, excluindo do programa áreas com indicação de demandas indígenas, mesmo sem delimitação mais específica.
6.3. Critérios para vistorias abaixo de quatro módulos fiscais
Apesar do Decreto 6.992/2009 ter estabelecido critérios para realização de vistoria em imóveis abaixo de 4 módulos fiscais, existem várias limitações para que eles sejam aplicados, principalmente nos critérios de identificação de conflitos pela posse da terra e autuação por crime ambiental ou por manter trabalhadores em condições análogas às de escravo.
Por exemplo, o Decreto 6.992/2009 define que a identificação de áreas de conflito ocorrerá em duas situações: a declaração do próprio ocupante no ato do cadastramento da posse ou o registro na Ouvidoria Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário. No entanto, dois questionamentos emergem desse fato. Primeiro, não há uma base de dados geográfica na qual os conflitos estejam identificados, o que limitará a identificação dos conflitos apenas ao nome do imóvel (por exemplo, nome da fazenda) no qual este ocorreu ou ao nome dos envolvidos no conflito. Mesmo assim, o cruzamento de dados pode não ser suficiente no caso de mudança de nome do imóvel, por exemplo.
Outro problema, que já foi superado de acordo com a coordenação estadual do Terra Legal no Pará, é a insuficiência das informações inseridas na base de dados da Ouvidoria Agrária. Segundo o representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Marabá[22], a Ouvidoria limita o recebimento de denúncias apenas aos casos repassados pelas delegacias de polícia. Sendo assim, esse dado seria insuficiente por dois motivos. Primeiro, nem todos os conflitos chegam a ser registrados em delegacias, principalmente porque muitos integrantes de movimentos sociais têm receio de procurar uma delegacia. Segundo, mesmo quando essas pessoas procuram a delegacia, os policiais nem sempre registram a ocorrência como causada por conflito de terra. Por exemplo, a ocorrência de um assassinato por disputa de terra nem sempre é classificada pela delegacia como conflito fundiário e, nesse caso, não é encaminhada à Ouvidoria (Batista, 2010). Assim, se a forma de identificação de conflitos ficar restrita apenas à base de dados da Ouvidoria, muitos casos de conflitos poderão ser ignorados e títulos de terra poderão ser emitidos nessas áreas, resultando no agravamento das disputas.
Como um exemplo do contexto mais geral, o representante da CPT indicou um levantamento de crimes no campo feito pela CPT para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Esse relatório mostrou que havia 687 assassinatos no campo ligados a conflitos agrários no Estado do Pará entre 1982 a 2008. Dentre estes, 62% nunca foram investigados (ou seja, provavelmente não ingressaram na base de dados da Ouvidoria). Dos 38% que tiveram algum procedimento, muitos dos acusados podem deixar de ser punidos porque a maioria está prescrita ou podem não constar nas bases de dado da Ouvidoria Agrária porque a delegacia classificou o conflito como briga entre vizinhos (Batista, 2010). Segundo a coordenação estadual do Programa Terra Legal no Pará, a base de dados da CPT passou a ser considerada para fins de indicação de conflitos a partir de 2010.
Outro aspecto que ainda está em discussão é o período de ocorrência de conflitos que será considerado para fins de vistoria e também de emissão de títulos. Por exemplo, a Lei 11.952/2009 limita a regularização para ocupações ocorridas até 2004 de forma mansa e pacífica. No entanto, se após 2004 o imóvel foi alvo de conflito pela terra, a exemplo de ocupações de movimentos sociais, ainda não está definido se esse fato excluiria o imóvel da possibilidade de regularização. Segundo a coordenadora do Terra Legal em Marabá, no Pará, casos como esse estão sendo avaliados em conjunto com a Vara Agrária e até fevereiro de 2010 ainda não haviam sido resolvidos (Reis, 2010b).
Outro critério para vistoria em imóveis abaixo de 4 módulos fiscais com limitações é a ocorrência de crime ambiental ou de autuação por trabalho análogo à escravidão. Nesses casos, o MDA deverá recorrer aos órgãos ambientais e ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) para coleta dessas informações. No entanto, apenas parte dos crimes ambientais é efetivamente alvo de autuações. Por exemplo, Brito (2008) constatou que apenas 48% das áreas desmatadas em Mato Grosso em 2005 foram objeto de autuação pelos órgãos ambientais estadual e federal. O mesmo ocorre para as autuações de trabalho escravo. Segundo um representante da CPT em Marabá, a comparação entre os dados levantados pela CPT e os dados de autuação das Delegacias Regionais do Trabalho (DRT) mostram que apenas 40% das denúncias desse tipo de crime recebem fiscalização (Batista, 2010).
Dessa forma, mesmo com as medidas que foram adotadas no primeiro ano do Terra Legal para tentar evitar os riscos de titulação indevida pela falta de vistoria em todos os imóveis, esse é um tema que continua sendo crítico para a continuidade do programa. Conforme visto anteriormente (Seção 2.2), o julgamento da Adin pode representar uma solução para esse problema caso a decisão seja favorável ao MPF e o STF acate o pedido de vistoria de todos os imóveis. Enquanto essa ação não for julgada ou se a decisão for contrária à vistoria em todos os imóveis, será essencial avançar com as propostas de medidas para identificação de áreas de populações tradicionais e indígenas não reconhecidas. Além disso, será fundamental divulgar amplamente nos municípios os mapas com os imóveis georreferenciados, para que atores locais identifiquem eventuais conflitos e sobreposições, conforme explicado na seção 5.
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22 José Batista, Advogado da CPT, entrevistado em 03/02/2010, em Marabá, Pará.
Titulação
A titulação de imóveis ocorre após a vistoria para os casos previstos em lei ou após o georreferenciamento quando a vistoria não é necessária. Os coordenadores estaduais do Terra Legal autorizam a emissão do título caso não seja encontrado nenhum impedimento legal.
Em 2009, o Programa emitiu 276 títulos no Pará, Mato Grosso e Rondônia, totalizando uma área de aproximadamente 790 quilômetros quadrados. A maior parte foi para o Pará, nos municípios de Altamira e Novo Progresso (Figura 10). A área média dos títulos emitidos foi de 286 hectares, com mínimo de 4 e máximo de 1.125 hectares, com desvio padrão de 302 hectares. Contudo, nenhum desses 276 títulos resultou das ações iniciadas pelo programa em junho de 2009. Eles resultaram de solicitações de regularização fundiária mais antigas feitas diretamente ao Incra e cujo georreferenciamento foi realizado pelo Exército Brasileiro e posteriormente validado pelo Incra.
Em abril de 2010 já era possível visualizar dados referentes à pessoa beneficiada com o título, tamanho da área, município e número do processo (MDA, 2010b). Em junho de 2010 também era possível visualizar a localização geográfica da maioria desses imóveis.
Figura 10. Distribuição percentual, por município, de 276 títulos de terra emitidos em 2009.
De acordo com o relatório de execução do Ano I do Terra Legal, a meta de cadastramentos até julho de 2010 seria de 103 mil posses em 30 milhões de hectares, ou seja, em seis meses dobrar o número de cadastros de posses e aumentar em 400% a área cadastrada (MDA, 2010c). No entanto, na 6ª Reunião do Grupo Executivo In-tergovernamental do programa, ocorrida em 17 e 18 de junho de 2010 em Brasília, as metas foram reajustadas. O novo planejamento indica que o MDA pretende emitir 23.001 títulos até dezembro de 2010 e 39.671 títulos em 2011 (Tabela 2). O Pará será o Estado mais beneficiado (MDA, 2010h).
Tabela 2. Metas de emissão de títulos do Programa Terra Legal em 2010 e 2011.
7.1. Valor da terra
Um tema relevante associado à emissão de títulos é o valor que será cobrado para os imóveis acima de 1 módulo fiscal. Pela Lei 11.952/2009, imóveis entre 1 e 4 módulos fiscais serão pagos com valor diferenciado e imóveis entre 4 e 15 módulos fiscais serão cobrados com base na tabela de preços do Incra e índices especiais.
O sítio eletrônico do Terra Legal não apresentava, até junho de 2010, os valores cobrados nos primeiros títulos emitidos, considerando que 197 dos 276 títulos estavam acima de 1 módulo fiscal, ou seja, constituem imóveis que são regularizados mediante pagamento. No entanto, segundo o MDA, os valores foram baseados em dois princípios: a capacidade de pagamento do ocupante e a tabela de preços referenciais de terras e imóveis rurais produzida pelo Incra, que possui valores de terra nua por hectare e por município.
Baseado nesses princípios, o MDA publicou a Portaria 01/2010, que fixa o procedimento para cálculo do valor da terra no Programa Terra Legal. A portaria estabelece que a partir da tabela referencial do Incra, considerando o valor mínimo da terra nua, incidirão índices relativos ao tempo de ocupação (chamado de índice de ancianidade), localização e condição de acesso, além do tamanho do imóvel. Assim, o valor final de cada hectare será obtido conforme descrito no Quadro 3.
Quadro 3. Fórmula para cálculo do valor do hectare para regularização fundiária no Programa Terra Legal.
VTNf/ha = VTNr/ha x Fdis x Fcon x Fdim x Fanc, onde
VTNf/ha: Valor final da terra nua por hectare.
VTNR/ha: Valor referencial da terra nua por hectare (baseado na tabela do Incra).
Fdis: índice do fator distância ao núcleo urbano ou distrito mais próximo.
Fcom: índice do fator acesso ao imóvel.
Fdim: índice do fator dimensão do imóvel.
Fanc: fator de ancianidade da ocupação, ou seja, tempo de ocupação.
Membros do Grupo Executivo Intergovernamental do Programa Terra Legal criticaram essa metodologia durante a 5ª reunião do GEI, em 25 de março de 2010 (MDA, 2010i). Primeiro, porque não existiriam dados confiáveis sobre a capacidade de pagamento dos produtores, o que prejudicaria a utilização dessa variável como um princípio norteador da definição de preços. Segundo, porque outros fatores, como estado de conservação ambiental dos imóveis, também deveriam ser levados em consideração. Ademais, o índice de ancianidade usado pelo MDA considera que quanto maior o tempo de ocupação, menor será o preço da terra, desconsiderando, por exemplo, o lucro obtido pelo ocupante com a exploração e venda da madeira. Assim, o valor a ser cobrado pelas terras ocupadas potencialmente premiará aqueles que usufruíram dos recursos naturais de forma gratuita e predatória (Brito & Barreto, 2010).
Finalmente, os valores a serem definidos para as terras federais precisam estar em consonância com os preços de terras estaduais que também serão objeto de regularização fundiária. Esse esforço é necessário para evitar que ocorra diferença no preço da terra em municípios em que houver parte do território sob jurisdição federal e parte em jurisdição estadual. Nesse caso, os órgãos estaduais deveriam participar das definições de preços junto com o MDA. Finalmente, o Tribunal de Contas da União (TCU) também deve participar da discussão sobre valores de terra, já que se trata da privatização de um recurso público e que deve ser objeto de fiscalização (MDA, 2010j).
Considerando a falta de consenso sobre a metodologia para definir o valor da terra na regularização fundiária, o MDA aprovou a realização de uma consulta formal aos membros do GEI. Contudo, enquanto os valores não forem revistos, a Portaria 01/2010 continuará em vigor. Ao final da consulta, se os valores definidos forem diferentes daqueles aplicados nos títulos já emitidos, será efetuado um reajuste, para maior ou menor.
Até julho de 2010, apenas o MPF havia se pronunciado nessa consulta. Em seu parecer, o MPF critica principalmente a elaboração da planilha referencial de preços do Incra, pois de acordo com informações do Incra, não existe uma metodologia regulamentada para elaboração dessa planilha e cada superintendência do instituto teria a prerrogativa de fazer as adaptações que entender necessárias. Além disso, a IN 01/2010 indica que o valor referencial do imóvel equivale ao mínimo apresentado na planilha referencial, que em geral já é abaixo do mercado. Em cima desse valor seriam aplicados índices que podem gerar até 80% de desconto sobre o valor mínimo, além do desconto de 20% por pagamento à vista. Ao final, o valor por hectare seria irrisório (MPF, 2010). O MDA deve responder a esse parecer e a outras contribuições a serem enviadas sobre a IN 01/2010 até a próxima reunião do GEI, prevista para novembro de 2010.
Outro aspecto que ainda pode passar por alteração é o encargo aplicado no caso de parcelamento da dívida. Como o preço da terra pode ser pago em até 20 anos, a Lei 11.952/2009 e o Decreto 6.992/2009 estabelecem que sobre o valor da terra incidem encargos financeiros adotados para o crédito rural oficial. Porém, o Manual de Crédito Rural utilizado nesses casos não possui referência à regularização fundiária. Por enquanto, a Portaria 01/2010 estabeleceu que os encargos para os títulos de terra serão retirados do item 6.2 do Manual de Crédito Rural (sobre recursos obrigatórios). Contudo, o MDA está avaliando a possibilidade de criação de outra categoria de encargos que leve em consideração o tamanho do imóvel (pequeno, médio e grande).
Assim, ainda estão indefinidas as metodologias para estimar o valor a ser cobrado para regularização fundiária via Terra Legal e os encargos financeiros que incidirão sobre esse valor. Esse é um assunto que deve ainda gerar debates na segunda metade de 2010 e cuja solução será crucial para avaliar a continuidade e credibilidade do programa entre os posseiros de terras e também perante os órgãos de controle e sociedade civil.
Desafios e Recomendações para o Programa Terra Legal
Nossa análise sobre o primeiro ano do Programa Terra Legal demonstrou que houve avanços no cadastramento de posses, mas que muitos desafios ainda persistem nas etapas de georreferenciamento, vistoria de imóveis e titulação. Além disso, os primeiros meses do programa também mostraram que os prazos inicialmente estabelecidos para emissão de títulos foram muito ambiciosos e incompatíveis com a complexidade fundiária da região.
O principal desafio do programa é conseguir avançar com a regularização de ocupações privadas sem interferir nas demandas prioritárias de regularização de terras, que incluem reconhecimento de Terras Indígenas, de territórios quilombolas e de populações tradicionais, cujos processos de regularização são mais demorados e realizados por outros órgãos governamentais. A seguir, destacamos os principais aspectos pendentes no primeiro ano do Terra Legal e recomendações sobre como avançar nas ações de regularização fundiária na Amazônia Legal.
1. Julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei 11.952/2009. Os pedidos feitos nesta Adin têm o potencial de alterar a estratégia do Terra Legal, pois incluem exigência de vistoria prévia em todos os imóveis. Por isso, é recomendável que o STF priorize o julgamento desta ação.
2. Manifestação de todos os órgãos interessados nas áreas de atuação do programa. Os órgãos com potenciais interesses nas áreas a serem regularizadas (por exemplo, Funai e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio) devem ser necessariamente ouvidos antes que as terras sejam tituladas. O prazo de trinta dias é incompatível com a realidade operacional desses órgãos. Para facilitar e agilizar esse processo, recomendamos que os órgãos interessados formem um grupo de trabalho para tratar dos interesses e conflitos em cada gleba que será regularizada.
3. Identificação de demandas de regularização de terras de povos indígenas e comunidades tradicionais. Apesar da proposta de parceria com o MMA na identificação de demandas de terra por populações indígenas e comunidades tradicionais, nenhuma medida concreta nesse sentido foi realizada no primeiro ano do Programa Terra Legal. É importante que esse processo ocorra anteriormente à emissão de títulos de terra em 2010, para evitar conflitos e dificuldades para cancelamento dos títulos indevidos.
4. Vistoria para imóveis cadastrados via importação de dados de outros sistemas. Mais da metade dos dados de cadastro no programa foram importados de outros sistemas, principalmente das DAPs. Para checar a veracidade dessas informações, recomendamos a realização de vistoria em todos os imóveis cadastrados dessa forma, incluindo aqueles abaixo de 4 módulos fiscais, nos quais a Lei 11.952/2009 não prevê vistoria obrigatória.
5. Divulgação das posses georreferenciadas antes da titulação. Apesar da divulgação via internet e atualização frequente das posses cadastradas no programa Terra Legal, as situações de sobreposição e problemas nas demandas por titulação ficarão mais evidentes à medida que o georrefe-renciamento avançar. Por isso, recomendamos que o MDA dissemine amplamente os mapas produzidos com dados do georreferenciamento entre as associações e movimentos sociais dos municípios-alvo do Programa. A avaliação dos mapas por essas instituições antes da titulação das posses será um elemento fundamental para prevenir titulações indevidas, seja por sobreposição a demandas não incluídas no cadastro ou por incompatibilidade entre os requerentes do título e os reais ocupantes das áreas.
6. Reformulação dos valores dos imóveis. Os critérios atualmente usados pelo MDA para definição dos valores de terra devem ser aperfeiçoados e refletir o valor de mercado dos imóveis na tabela referencial usada para o cálculo, além de considerar variáveis ambientais dos imóveis. Por exemplo, o estado de conservação ambiental ou o tipo de recursos naturais já explorados e sobre os quais o ocupante lucrou. Além disso, a definição de valores deve ser feita em consonância com os valores que serão estipulados pelos órgãos estaduais de terra, para evitar distorções em preços de imóveis em municípios com dupla jurisdição (federal e estadual).
7. Divulgação de valores de títulos emitidos. A transferência de patrimônio público para privado deve ocorrer seguindo o princípio de transparência da Administração Pública. Isso inclui a divulgação do valor cobrado pela terra nos imóveis titulados.
Anexos
Anexo 1. Módulo Fiscal na Amazônia Legal.
Anexo 2. Principais estatísticas do cadastramento, por Estado, no primeiro ano do Programa Terra Legal.
ACRE
AMAPÁ
AMAZONAS
MARANHÃO
MATO GROSSO
PARÁ
RONDÔNIA
RORAIMA
TOCANTINS